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“Intelectual não vai à praia. Intelectual bebe.” Essa frase, espécie de lema da boemia carioca dos anos 60, teria sido cunhada por um dos bebuns mais folclóricos do Rio de Janeiro à época, o economista Roniquito de Chevalier, figura que dedicava igual dedicação aos copos e às frases epigramáticas que despejava com generosidade pelos bares na Cidade Maravilhosa. Paulo Francis, outro devoto do santo Scotch (cerveja era pra amadores), vivia repetindo essa máxima etílica, levando muitos a acreditarem que ela tinha sido cunhada por ele. E há também quem atribua essa autoria a outro figuraça das noites cariocas, o Hugo Bidê, que ganhou esse sobrenome por ter, supostamente, servido uma feijoada no bidê do seu banheiro, por falta de recipiente mais adequado.
É possível especular que o elemento oculto nessa frase famosa é a palavra ressaca, que explicaria porque o intelectual não vai à praia, acometido, ao acordar, por ondas de vômito, cefaleia e depressão alcoolêmica, quando não também de diarreia. E quem é que se aventura a pegar uma praia nessas condições? O ressacado intelectual só consegue ficar jogado num canto até que suas funções neurovegetativas se estabilizem, em geral já de noite, com todos os bares e boates de portas abertas outra vez, a exemplo das garrafas de bebida e de não poucos corações femininos.
Falando em corações femininos, desnecessário dizer que esse intelectual da frase do Roniquito é presumivelmente um homem, nunca uma mulher. Naquele meio essencialmente machista, apesar de muito divertido e até romântico, a mulher só pagava de musa ou de sex toy da rapaziada. As intelectuais deviam ficar em casa, lendo, ou nas universidades, tendo ou dando aulas, e não costumavam dormir bêbadas às 6 da manhã, depois de chutadas pra rua pelo porteiro do último inferninho de Copacabana, por supuesto. Sorte delas, diria um sóbrio contumaz.
Entre os intelectuais bebuns, os escritores artistas — romancistas, contistas, poetas, dramaturgos — sempre se destacaram por sua tendência a agarrar-se a um drink como fator estabilizante no mar de procela que pode virar a vida cotidiana de gente que vive em luta corporal com a criação literária. Fernando Pessoa, por exemplo, durango e solitário, nadava em vinho todos os dias e ainda escrevia que “Boa é a vida, mas melhor é o vinho.” E ainda melhor seria o vinho se não desse uma ressaca dos diabos na manhã seguinte.
Vinícius de Moraes, outro bebum com assento cativo na boemia carioca, dizia que “o uísque é o melhor amigo do homem. O uísque é o cachorro engarrafado.” Vi o Vinícius entrar no restaurante em que eu estava, em São Paulo, nos anos 70, carregando um copo de uísque, que não largou durante todo o jantar. E foi com esse mesmo copo, muitas vezes reabastecido, que o grande bardo saiu do restô, horas depois. Era o copo, parecia, que levava o Vinícius pra passear, como um cachorro amestrado. Outro grande fã da bebida dourada das terras altas da Escócia era o Faulkner, para quem “Não existe esse negócio de uísque ruim. O que acontece é que há uísques melhores que outros, só isso.” Escritor de hábitos noturnos, ele mesmo confessava que não deitava uma palavra no papel sem ter um uiscão ao lado da máquina de escrever. Na William Faulkner House, em Oxford, Mississipi, estado sulista dos States onde ele nasceu, pode-se ver o copázio de metal onde o escritor preparava, e no qual bebia, seu drinque preferido, o mint julep, à base de uísque, raminhos de hortelã macerada, uma pitada de açúcar e gelo picado. Dá pra imaginar as monumentais ressacas que o genial autor de “O som e a fúria” e “Absalão! Absalão!” amargou antes de ganhar aquele Nobel de literatura, em 1949. Só me pergunto se ele estava bêbado ou de ressaca quando foi lá na Suécia receber a honraria e o correspondente chequinho, que deve ter financiado inúmeros mint juleps dali por diante.
Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.
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