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(colunista até março de 2017)

500 anos de ‘Utopia’

22 de setembro de 2016

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A narrativa que Thomas More publicou em 1516 tem uma moldura ficcional sem grande importância que serve apenas de pretexto para a exposição das ideias e ideais de teor igualitário de seu autor

É uma pena, mas não estou conseguindo achar meu velho volume da “Utopia”, do Thomas More, caindo aos pedaços, mas ainda legível. Achei a preciosidade muitos anos atrás na lixeira do meu andar, num antigo prédio onde morei. Um vizinho de uns 70 anos e uma bronquite crônica que se ouvia de longe tinha descartado o título famoso em meio a outros livros de páginas amarelecidas que já não lhe deviam servir pra nada. Conforme me revelou aquele antigo vizinho numa curta viagem de elevador, seu médico lhe recomendara desfazer-se dos livros e papéis velhos, criatórios de fungos que bombardeavam seus brônquios muito mais do que alimentavam seus neurônios.

Eu, que vivo arranhando a garganta entre as velharias das estantes do mocó onde trabalho, sei bem o que é isso. Um dia desses também terei de jogar tudo fora, inclusive essa minha “Utopia” estropiada e de segunda mão que já deveria ter seguido pra reciclagem e virado um muito mais útil rolo de papel higiênico, por exemplo. Não poucas utopias, por sinal, partilham essa mesma sina: envelhecer, criar mofo e ser descartada numa lata de lixo, seja a da história ou de um prédio de apartamentos.

O livro, que deve estar entocado em algum lugar dessa bibliobarafunda que me cerca, está tão velho e capenga que parece ter sido impresso pelo próprio Thomas More em 1516, quando foi publicado pela primeira vez em Louvain, na Bélgica – há 500 anos redondinhos, portanto. Só de me lembrar dele já começo a espirrar e tossir. Devo ter criado alguma forma de alergia a velhas utopias. Para escrever esta crônica me valho, pois, de uma cópia digitalizada que achei na internet, livre de fungos e cupins.

Escrito originalmente em latim, “Utopia” só ganharia a primeira tradução para o inglês na Inglaterra, terra natal de More, em 1551, quase duas décadas depois de sua morte, em 1535, por decapitação. E não foi o Estado Islâmico o seu carrasco, e sim o rei da Inglaterra, Henrique 8º, com quem More, importante funcionário da justiça, da igreja católica e da diplomacia de seu país, bateu de frente. O rei tinha rompido com o papa por alegadas razões político-religiosas, arvorando-se, a partir de então, em líder máximo da igreja em seus domínios. More, defensor da causa do Vaticano, acabou perdendo literalmente a cabeça por isso.

Nosso autor era o que chamaríamos de um caráter inflexível, irrredutível, inegociável. O homem não dava mole nem pra si mesmo. Enquanto estudante de direito, o jovem Thomas More procurava domar seus instintos carnais submetendo-se a uma disciplina rígida que incluía uma camisa de crina que lhe pinicava cruelmente a pele, um toco de árvore usado de travesseiro e um chicotinho com o qual se açoitava todas as sextas-feiras. E não se dobrava nem diante da vontade dos reis.

(colunista até março de 2017)estreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.

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