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Lilia Schwarcz

Conselho de graça ou como ser nobre no Brasil

26 de setembro de 2016

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Anotando bem os termos do discurso de nosso atual chefe de Estado, sobretudo quando no exterior, foi impossível deixar de lembrar da estrutura dos contos de fadas e das saídas políticas implementadas por nossos reis de carne e osso

Ninguém me pediu, mas hoje acordei com vontade de dar conselhos. Todos nós sabemos que o atual governo brasileiro anda enfrentando problemas de “comunicação com o povo”, dizem seus colaboradores mais próximos, e que para superar o “impasse” seria preciso que adotasse métodos de “aproximação” mais eficazes. Mesmo assim, em recente viagem a Nova York, na única entrevista (de dez minutos) que concedeu, Temer defendeu, entre outros, sua teoria de “reunificação nacional”; a ideia fixa de que em “brevíssimo período” o “terremoto político ficaria para trás”, bem como a “tese da pacificação” e do “momento de clara estabilidade” que vive o país. A lógica parece ser aquela do velho jogo do “telefone sem fio” ou do modelo dos contos de fadas: é só ter varinha de condão ou uma retórica caprichada que tudo se resolve num gracioso “viveram felizes para sempre”. O movimento lembra também a retórica das histórias da Carochinha, aquelas que contam narrativas de reis e rainhas que passam suas vontades por decreto. O problema é que os reis dos contos para crianças não precisam ter projetos para seus domínios, e tampouco estão preocupados em  reunir o povo ou até mesmo as elites em torno de uma política de Estado. Na verdade, seria exigir muito deles; essas são histórias que padecem de futuro e nunca ficamos sabendo o que ocorre depois da palavra “FIM”.

Entretanto, anotando bem os termos do discurso de nosso atual chefe de Estado, sobretudo quando no exterior, foi impossível deixar de lembrar da estrutura dos contos de fadas e das saídas políticas implementadas por nossos reis de carne e osso. Ou melhor, das práticas de corte de nossos governos imperiais, acionadas, em geral, em momentos de crise, como uma maneira de realinhar e apaziguar, ao menos, as elites dissidentes. Foi então que pensei numa saída para o impasse entre a imaginação e a realidade. Que tal recriar a prática de uma nobreza tropical, com todos os seus benefícios e saídas milagrosas?

Pois bem, foi nos tempos de D. João 6º que a colônia americana recebeu uma série de instituições culturais: o Museu Real, a Imprensa Régia, o Real Horto, a Biblioteca Real. Data dessa época, ainda, o estabelecimento de uma heráldica brasileira, cujo marco inaugural foi a criação da Corporação de Armas, em maio de 1810, vinculada de forma imediata à Casa Real. O processo de titulação que se iniciava, a partir de então, seguiria o modelo lusitano, com uma ampliação do repertório. O rei de Armas além de trazer no seu nome “de Portugal e Algarves”, acrescentava agora “América, Ásia e África”. O reino crescia, assim como aumentava o espectro de sua corte. Coisas de política de aliança e de bem governar.

Durante o período em que  permaneceu na colônia (de 1808 a 1820), d. João teria tempo de nomear alguns titulares – mais exatamente 254; entre 11 duques, 38 marqueses, 64 condes, 91 viscondes e 31 barões -, além de garantir a nobreza àqueles que já a traziam consigo desde Portugal. Começava assim a história de uma corte “migrada e recriada” e dessa verdadeira cruzada de nobilitação. D. João pagaria pelos favores recebidos na colônia com títulos e honras distribuídos à farta para a elite dirigente. Esse é o caso de Elias Antônio Lopes, um rico comerciante português, que “cedeu” ao príncipe uma casa de campo em São Cristóvão, dizendo não ter outro interesse senão “o bem estar de Sua Majestade”. Bom arranjo: Elias Lopes recebeu, anos mais tarde, e devidamente inflacionado, o valor de sua “oferta” e ainda virou nobre da Corte. Nada como estreitar vínculos de dominação!

Com o retorno de D. João a Portugal, e já durante o Primeiro Reinado de d. Pedro, em meio aos acirrados debates em torno do projeto de 1823 e da Constituição de 1824, um item passava quase desapercebido frente aos temas mais polêmicos da agenda. Tratava-se do artigo 102, item 11º da Constituição política do Império. Nele, estabelecia-se no corpo da lei o que fora dado costumeiramente. Entre as competências do imperador, como chefe do Executivo, ficava garantido o direito “de conceder títulos, honras, ordens militares e distinções em recompensa dos serviços feitos ao Estado”. Além do mais, como parte das atribuições do polêmico “poder moderador” – um 4º poder de exclusa competência do soberano – , no artigo 142, item 7, constava que cabia somente ao monarca “conceder remunerações, honras e distinções, em recompensa de serviços prestados”. Formalizava-se, assim, o nascimento de uma nobreza que surgia umbilicalmente vinculada ao imperador e, mais, precisava se submeter a ele. Apenas uma outra originalidade: em vez do modelo europeu que recompensava os bons serviços com títulos não só vitalícios como hereditários, no Brasil a hereditariedade só era garantida para o sangue real, enquanto a titularidade resumia-se ao seu legítimo proprietário. Trocando em miúdos: nada de herdar título; apenas o titular garantia o seu.

Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.

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