Coluna
Lilia Schwarcz
Quando faltam palavras e sobra assombro: 2016, o ano que não quer acabar
Temas
Compartilhe
Desde as últimas eleições realizadas nos EUA, morar no centro de Nova York ou circular pelas imediações da Trump Tower virou um verdadeiro périplo. É preciso enfrentar ruas fechadas, barricadas nas calçadas, policiais mal-encarados, uma legião de turistas curiosos com suas máquinas nas mãos – ansiosos para ver se o futuro presidente ou a primeira-dama dão uma “palhinha” na janela –, bem como contornar todo tipo de manifestações contestando o resultado do escrutínio nacional. Vale até bater papo com um atencioso Papai Noel, o qual, há semanas, continua estacionado bem em frente do prédio – no outro lado da avenida. Revoltado, e a despeito do frio que anda fazendo, lá está ele, todos os dias, carregando um cartaz: “este ano não vai haver Natal e a culpa é do Trump”.
Só com autorização é possível passar exatamente na frente do edifício. Bem na movimentada esquina da 5ª Avenida com a Rua 57, na mesma calçada do ostensivo prédio neoclássico, está agora instalada uma espécie de tenda, feita de um plástico branco, frágil e improvisado. Por lá, um batalhão de seguranças indaga os transeuntes acerca de suas intenções e inspeciona bolsas e sacolas. O ritual é no mínimo constrangedor e, quem pode, encontra um caminho alternativo para tomar.
Na verdade, o quarteirão inteiro permanece bloqueado. Apenas os moradores locais são autorizados a adentrar tais vias, mas mediante comprovação prévia. Precisam ainda submeter seus veículos a vistorias, com direito a cachorros especializados em detectar qualquer cheiro ou sinal de perigo. Todo esse impressionante aparato custa, ao cidadão residente na cidade, a bagatela de US$ 1 milhão por mês; isso até o futuro presidente decidir mudar-se para Washington. Aliás, isso se ele conseguir convencer sua esposa e filho a viver na capital administrativa do país. Caso isso não ocorra, parte da segurança permanece por lá – e os gastos também.
A operação é mesmo gigantesca, mas impressiona, ainda mais, como passado um mês e meio das eleições vai se naturalizando esse tipo de interdição privada nas vias públicas. O trânsito virou um inferno; buzinas ecoam mais de três quarteirões contíguos e, mesmo assim, a população limita-se a contornar os desvios, ou passar ligeiro pelas áreas ocupadas. Parece nem mais notar o cenário apresenta bem à frente de seus olhos, e que ocasiona tamanho incômodo diuturnamente. Ao mesmo tempo, rotinizam-se as passeatas já incorporadas ao cotidiano da cidade. Devidamente protegidas pela polícia de Manhattan, passam sem que se dê demasiada importância a elas. A impressão que fica é que nada resiste à pátina, por vezes perversa, do cotidiano.
Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
Destaques
Navegue por temas