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Lilia Schwarcz

Quando faltam palavras e sobra assombro: 2016, o ano que não quer acabar

19 de dezembro de 2016

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Em geral faltam termos quando nos escapa a situação. E pior; no lugar daqueles mais usuais, muitas vezes surgem outros, com uma velocidade e urgência impressionantes

Desde as últimas eleições realizadas nos EUA, morar no centro de Nova York ou circular pelas imediações da Trump Tower virou um verdadeiro périplo. É preciso enfrentar ruas fechadas, barricadas nas calçadas, policiais mal-encarados, uma legião de turistas curiosos com suas máquinas nas mãos – ansiosos para ver se o futuro presidente ou a primeira-dama dão uma “palhinha” na janela –, bem como contornar todo tipo de manifestações contestando o resultado do escrutínio nacional. Vale até bater papo com um atencioso Papai Noel, o qual, há semanas, continua estacionado bem em frente do prédio – no outro lado da avenida. Revoltado, e a despeito do frio que anda fazendo, lá está ele, todos os dias, carregando um cartaz: “este ano não vai haver Natal e a culpa é do Trump”.

Só com autorização é possível passar exatamente na frente do edifício. Bem na movimentada esquina da 5ª Avenida com a Rua 57, na mesma calçada do ostensivo prédio neoclássico, está agora instalada uma espécie de tenda, feita de um plástico branco, frágil e improvisado. Por lá, um batalhão de seguranças indaga os transeuntes acerca de suas intenções e inspeciona bolsas e sacolas. O ritual é no mínimo constrangedor e, quem pode, encontra um caminho alternativo para tomar.

Na verdade, o quarteirão inteiro permanece bloqueado. Apenas os moradores locais são autorizados a adentrar tais vias, mas mediante comprovação prévia. Precisam ainda submeter seus veículos a vistorias, com direito a cachorros especializados em detectar qualquer cheiro ou sinal de perigo. Todo esse impressionante aparato custa, ao cidadão residente na cidade, a bagatela de US$ 1 milhão por mês; isso até o futuro presidente decidir mudar-se para Washington. Aliás, isso se ele conseguir convencer sua esposa e filho a viver na capital administrativa do país. Caso isso não ocorra, parte da segurança permanece por lá – e os gastos também.

A operação é mesmo gigantesca, mas impressiona, ainda mais, como passado um mês e meio das eleições vai se naturalizando esse tipo de interdição privada nas vias públicas. O trânsito virou um inferno; buzinas ecoam mais de três quarteirões contíguos e, mesmo assim, a população limita-se a contornar os desvios, ou passar ligeiro pelas áreas ocupadas. Parece nem mais notar o cenário apresenta bem à frente de seus olhos, e que ocasiona tamanho incômodo diuturnamente. Ao mesmo tempo, rotinizam-se as passeatas já incorporadas ao cotidiano da cidade. Devidamente protegidas pela polícia de Manhattan, passam sem que se dê demasiada importância a elas. A impressão que fica é que nada resiste à pátina, por vezes perversa, do cotidiano.

FOTO: LILIA SCHWARCZ/NEXO

Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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