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O filme ” Pitanga ” dirigido por Camila Pitanga e Beto Brant foi lançado no início deste mês, abril, em várias salas de cinema do país. Apesar de ser amplamente divulgado como uma biografia do ator Antonio Pitanga, que teve algumas dezenas de participações no cinema brasileiro, o filme é, também, uma viagem cinematográfica sobre a história do cinema brasileiro contada em primeira pessoa.
Sempre me questionei sobre o fato de os filmes, mostras, monumentos na cidade, homenagens em geral feitas a pessoas de grande importância para o país e o mundo serem feitas, normalmente, apenas quando elas vêm a falecer. Isso é curioso porque esbarramos com a história viva pelas ruas, tomamos café na mesma padaria que elas e nem sequer sabemos quem elas são. O cinema e a literatura servem para visibilizar esses nomes de interesse público e mostram o quanto caminhamos e ainda o quanto temos para caminhar.
No filme, Antonio Pitanga faz o que mais, me parece, gosta de fazer: conversar com as pessoas. E ele vai o filme inteiro encontrando gente bonita como Jards Macalé, Zezé Motta, Ruth de Souza, Paulinho da Viola, Elisa Lucinda, Martinho da Vila, amigos de infância do Pelourinho em Salvador, entre outros. As conversas vão de futebol a lembranças das cenas que fez. Mas o que chama atenção mesmo, pra mim, é que este é um filme sobre vida, ser grato a ela e estar vivo no mais alto grau que podemos imaginar. Elisa Lucinda tem razão quando diz: “o Pitanga é um griot, toda hora ele tem uma história para contar”. E é verdade! Além de ser um ator que tem uma importância enorme para a história do cinema brasileiro, é, também, um homem negro que ultrapassou as linhas de vida cruelmente delimitadas para negros e negras neste país.
Estive na estreia do filme aqui no Rio de Janeiro e foi numa semana difícil e triste, no mesmo período em que Maria Eduarda, de 13 anos, foi assassinada dentro da escola, na zona norte do Rio de Janeiro. Essa foi uma semana que repensei o pouco que já fiz até aqui e o tanto de coisa que ainda tem pela frente. Me senti num quarto escuro, sem orientação, completamente deslocada com as péssimas notícias que chegavam de jovens negros e negras sendo mortos em várias partes do país. E de repente me vejo numa sala de cinema, lotada de pretos e pretas, se abraçando, se beijando, declarando as suas devidas admirações uns pelos outros e outras, se conhecendo, se adorando, admirando. Esse filme trouxe um respiro, uma mensagem que dizia: continuem. As nossas vidas valem, importam e têm muita história. E estamos aqui e agora no cinema para nos banhar de possibilidades que podemos ter para permanecermos vivos. A melhor forma que temos para responder ao racismo é nos banhando de vida. E essa é uma das principais formas que qualquer negro e negra tem de lutar contra a discriminação racial, apenas se mantendo vivo e viva da forma que se escolheu estar, fazendo o que se gosta, cercado de amigos e amigas, com um sorriso no rosto, com ternura e generosidade no olhar, sem perder a fé.
Esse filme é um carinho, é uma roda de samba em dia ensolarado! É uma viagem cinematográfica que consegue tocar em lugares que dão um estímulo para permanecer e procurar cada dia mais se nutrir de muitas vidas, de gente, de histórias. Deveria passar nas escolas, nas praças, nos terreiros, nas universidades, periferias e favelas de todo país, para todo tipo de gente: negro, branco, indígena. É um filme que nos ajuda a descolonizar o pensamento sobre ser negro no Brasil. Um homem negro que tem nome e sobrenome, que tem história, que tem origem parecida com a maioria das pessoas deste país, que nos ensina o verdadeiro sentido de estar vivo, que pauta o seu discurso nas presenças entre tantas narrativas sobre ausências que, historicamente, atravessam as vidas negras. Um filme para pensar as movimentações de um corpo negro que não se sustenta em discursos meritocráticos, que sabe que seu lugar é aquele em que se escolheu estar.
Yasmin Thaynáé cineasta, diretora e fundadora da Afroflix, curadora da Flupp (Festa Literária das Periferias) e pesquisadora de audiovisual no ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro). Dirigiu, nos últimos meses, “Kbela, o filme”, uma experiência sobre ser mulher e tornar-se negra, “Batalhas”, sobre a primeira vez que teve um espetáculo de funk no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e a série Afrotranscendence. Para segui-la no Twitter: @yasmin_thayna
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