Coluna

Giovana Xavier

Deu no New York Times: o Pequeno Príncipe é preto

11 de junho de 2018

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Cada vez que penso em comprar um livro ou brinquedo educativo, antes de colocar no carrinho, pergunto-me: para quem é o presente?

Semana passada, recebi um e-mail com o seguinte título “Solicitação do New York Times, breve entrevista sobre custo da violência”. Meu primeiro sentimento foi: é vírus! Olhei, respirei, mostrei para meu namorado. Fiz todo aquele movimento básico de quem está onde teoricamente não era para estar. Lembrar quem sou, minha formação, o lugar que ocupo. Superada essa exaustiva etapa, quando finalmente abri a mensagem, havia um convite. “Gostaríamos de um breve comentário sobre a terceira edição do Atlas da Violência 2018 , publicada pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) em parceria com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada)”. Embora óbvio, o teor do pedido trouxe algo diferente, que me fez aceitar de imediato.

A jornalista Lis Moriconi e o correspondente Ernesto Londono solicitavam que eu comentasse o “custo da violência”, enfatizando mais o lado “humano” do que os “números”. A especificidade transportou-me a momentos da minha participação no TEDxUFRJ . Nele, com base em dados do CNPq , mostrei  que de 258 bolsistas de produtividade mulheres, nível 1 A (o mais alto), 250 são brancas, 8 negras. Ressignificando o movimento #vidasnegrasimportam para o contexto acadêmico, perguntei-me: quem são? Como será a vida dessas oito acadêmicas? Mas essa pauta, apesar de tentadora, é matéria para outra coluna.

O curioso disso tudo é como o danado do cérebro pratica a simultaneidade, sem percebermos. Enquanto trabalhava convencendo-me de que o convite do New York Times era para mim, relembrando o TED, adivinhando quem são minhas oito colegas e pensando na resposta a ser escrita, lembrei de uma importantíssima missão materna. Retornar à janela aberta no computador (há dias) para finalizar a compra de ingressos para assistir com Peri, meu filho, à  peça “O pequeno príncipe preto”. Com direção e texto do ator e dramaturgo Rodrigo França , o monólogo, inspirado no livro de Saint-Exupéry, teve pré-estreia carioca no dia 9 de junho, no Festival Trema . Entre outros argumentos que explicam o porquê da adaptação, o protagonista Junior Dantas ressalta : é importante criar “referências positivas” de negritude na literatura infanto-juvenil.

Com a resposta ao jornal americano entregue, permiti-me alguns momentos de pausa. Fui até o quarto do Peri, visitei sua prateleira de livros. Peguei, emocionada, o primeiro que comprei. Do tempo em que ele ainda morava na minha barriga e, como costuma dizer, “brincava de escorrega lá dentro”. “Ops” , de Marilda Castanha, narra, por meio  de lindas imagens, as peripécias de um menino pretinho que vive a vida brincando. Até hoje Peri curte folhear, levar para escola e ler junto comigo e com o pai a história. Ao ponto de cogitarmos comprar um segundo exemplar, pois moramos em casas diferentes. Fiquei pensando na minha trajetória de mãe negra. Em quantas vezes trabalho nas sessões de análise a importância de diferenciar minha história daquela de meu filho. Um movimento difícil de ser feito. O racismo deixa não somente cicatrizes, mas feridas que não fecham.

Hoje, cada vez que penso em comprar um livro ou brinquedo educativo, antes de colocar no carrinho, pergunto-me: para quem é o presente? Para você ou para seu filho? Na maioria das vezes, a resposta é: para Giovana. É dolorido assumir isso porque me faz reviver uma infância perversa, sem referenciais positivos que me preparassem da melhor forma para responder à pergunta “o que você quer ser quando crescer?”. Mas como nem tudo é preto ou branco, junto com a dor e o complicado desejo de reparar meu passado, vem também a alegria do tempo presente. A felicidade de perceber que Peri constrói, desde os primeiros dias, sua própria história. A de uma criança que gosta de se saber negra, preta, marrom e tantos tons pelos quais se define. Eu, fãzona, aplaudo. O amor próprio do Peri tem a ver não apenas com meu trabalho, do pai, da escola, mas com lutas históricas pela reeducação das relações raciais no nosso país, conforme nos conta o historiador Amilcar Pereira . Travadas por diversos movimentos sociais negros, tais batalhas desdobram-se em conquistas, hoje ameaçadas, como a promulgação da Lei 10.639/03 , que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira.

Giovana Xavieré professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil.

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