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Alicia Kowaltowski

2020: o ano que foi, e ao mesmo tempo não foi, da ciência

30 de dezembro de 2020

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Entre avanços e ataques, cientistas viram seu trabalho ser mais valorizado em meio à pandemia

Poucas horas nos separam da celebração de transição do fatídico ano de 2020 para 2021. Como os antigos romanos, que usavam a data para celebrar o deus Janus (com duas faces, que olham ao mesmo tempo para o passado e para o futuro), nós usamos a data simbólica para reflexões e resoluções por mudanças. Estou convicta de que 2021 será um ano menos sofrido, pois a ciência está triunfando e estamos vendo (admitidamente de longe) o início de um processo de vacinação mundial que, com tempo e determinação, irá acelerar significativamente o término da batalha que travamos contra o novo coronavírus, e que já resultou em aproximadamente 200 mil mortes comprovadas somente no Brasil.

A vacinação começou com uma inovadora modalidade de imunizante, produto de anos de pesquisa. Em vez de entregar partes do vírus já prontas para levar o sistema imune a criar anticorpos contra o vírus, estas vacinas entregam instruções de como construir pedaços do vírus para as nossas células, por meio do RNA mensageiro. As nossas células então produzem pedaços inofensivos do vírus, e também desenvolvem anticorpos, que previnem a doença. Incrivelmente, essas vacinas se provaram extremamente eficazes como mecanismo de prevenção à covid, com índices de sucesso muito superiores aos necessários para a efetiva proteção da população. Prevejo que elas não serão somente uma revolução no controle da atual pandemia, mas também na produção de vacinas em geral.

Não são só as vacinas de RNA que foram desenvolvidas rapidamente e de modo seguro e eficaz em 2020. Vacinas com tecnologias mais tradicionais, mais baratas e mais fáceis de distribuir em um país como o nosso também se mostraram muito eficazes em combater a infecção e, muito importantemente, em prevenir casos graves. As vacinas se somam à enorme quantidade de conhecimento acumulado sobre a covid, incluindo entender como a doença se transmite e como melhor tratá-la. Tudo isso é produto do trabalho de cientistas feito coletivamente durante décadas, construindo laboratórios, treinando pessoas e desenvolvendo conhecimento necessário para poder responder rapidamente a uma crise aguda. 2020 é o ano em que o trabalho da ciência se tornou visível para o mundo de maneira muito mais contundente. É o ano em que a ciência virou notícia diária, divulgadores científicos viraram celebridades, e a nossa profissão se tornou mais respeitada.

Mas se 2020 foi o ano da visibilidade e incríveis avanços da ciência, na esfera política brasileira há enorme incapacidade de compreensão que especialistas científicos sabem mais sobre o assunto em questão, justamente porque se especializaram durante anos. A ciência nacional vem observando seus investimentos minguarem desde 2016, e neste ano viu uma diminuição maior ainda nos fundos investidos. Preocupantemente, uma recente alteração no sistema de distribuição de bolsas de treinamento de novos cientistas resultou numa diminuição drástica no número de jovens que irão ser treinados. Isso ocorreu por baixo do nariz do ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, cuja única qualificação para o cargo parece ser ter ido ao espaço. Me questiono se de fato ele já retornou do vácuo que cerca o nosso planeta, pois durante este ano esteve completamente ausente, exceto para tentar, erroneamente, convencer a população que remédio para lombriga seria a solução mágica para a covid, embora vírus e parasitas intestinais não tenham nada de semelhante que justifique tal suposto tratamento.

Além do astronauta, temos um ministro da Educação sem educação e um ministro da Saúde cuja qualificação para o cargo parece ter sido não antagonizar demasiadamente durante os meses em que atuou como interino. Todos foram apontados por um presidente que virou motivo de chacota no mundo pelo seu anticientificismo: levantou caixas de cloroquina por todo lado, até mesmo para emas, como se isso fosse uma solução mágica para a peste. Disse que uma doença que matou mais de um milhão de pessoas no mundo não era mais que uma gripezinha, e incitou aglomerações, sabidamente aumentando riscos da população. Agora, com o advento de vacinas eficazes e disponíveis, espalha inverdades, questionando sua segurança, implicando que necessitariam de termo de responsabilidade por parte de quem toma (e não por parte de quem coloca a população em risco ao não tomar!) e até mesmo chegando ao absurdo de sugerir que possam transformar pessoas em répteis. No ano em que a ciência mais se tornou visível, temos a vergonha de ter o líder mundial mais cientificamente antagônico de todos.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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