Coluna

João Marcelo Borges

Por que unificar os pisos de gastos em educação e saúde

02 de março de 2021

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Extinguir os mínimos constitucionais é inoportuno e ruim, mas podemos aliar proteção a esses direitos à flexibilidade requerida por um país diverso e em rápida transição demográfica

O relatório e o substitutivo à PEC Emergencial (PEC 186/2019), apresentados pelo senador Márcio Bittar há duas semanas, reacenderam o debate sobre os pisos constitucionais de gastos em educação e saúde. O texto original da proposta propunha sua unificação , mas o substitutivo do relator defende a supressão desses dispositivos. Como se poderia esperar, gestores educacionais e organizações que militam no setor reagiram vigorosamente, advertindo que a aprovação da PEC inviabilizaria o novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) e resultaria em perdas superiores a R$ 95 bilhões no ensino público de todo o país. Por outro lado, especialistas em finanças e gestão públicas defenderam a consolidação dos pisos , de sorte a dar maior flexibilidade aos gestores estaduais e municipais. Nesta coluna, discuto os principais argumentos utilizados no debate sobre a educação, apresento a experiência internacional e concluo com uma proposta que ainda não foi ventilada por nenhum ator. Mas comecemos pelo início.

A proposta de extinção dos pisos (ou mesmo de sua unificação) é certamente intempestiva. O país se encontra no pior momento da pandemia, com UTIs lotadas em quase todas as unidades da Federação, alto desemprego, milhões de pessoas desassistidas desde a interrupção do auxílio emergencial, trajetória fiscal pouco sustentável, além de obstáculos imediatos à sobrevivência de seus cidadãos e ao funcionamento mínimo de diversos setores da vida nacional (escolas, centros de assistência social, comércio etc.). Faz sentido alterar tão substantivamente a Lei Maior em um cenário como esse? É óbvio que não.

Aliás, devemos nos perguntar: quantos países precisaram mudar sua Constituição para responder aos efeitos da pandemia? Numa pesquisa rápida, encontrei pouquíssimos, mas deixo aos leitores a sugestão de aprofundar essa investigação. Se de fato forem raros os casos, é lícito também indagar: por que, no Brasil, tivemos de emendar a Carta Magna nesse período? Ela é tão rígida que não permite flexibilidade ou o Executivo e o Legislativo são tão inscientes das possibilidades contidas no texto constitucional que não os conseguem explorar? A resposta é provavelmente uma mistura das duas coisas, ademais confirmada em termos empíricos: promulgada com 245 artigos em 1988, a Constituição brasileira já recebeu 108 emendas , uma média superior a três por ano.

Voltemos à extinção dos pisos de gastos em educação e saúde, mas o façamos sem o “manto diáfano da fantasia”, pois até os alcatifados corredores subterrâneos do Congresso Nacional sabem que a medida não seria (e não será) aprovada . Politicamente, a proposta é apenas o conhecido “bode na sala”, expediente comum no Congresso Nacional, por meio do qual os parlamentares atraem a atenção pública a um tema muito controverso, que eles sabem que não prosperará, enquanto encobrem outros que, por vezes, podem ser tão ou mais polêmicos, mas que passam despercebidos. De fato, enquanto a pressão pública se concentrava nos pisos, gestores e militantes sequer alertaram para outros dispositivos da PEC, que alteram radicalmente o financiamento da educação básica em nível infraconstitucional, com mudanças na distribuição da cota-parte federal do salário-educação (que abre espaço no teto de gastos) e a revogação da lei que transfere para educação e saúde parte significativa dos royalties com a exploração de petróleo e gás que, segundo simulações preliminares , resultariam em uma redução superior a R$ 18 bilhões nos aportes à educação básica.

Para que os entes possam se beneficiar da flexibilidade na aplicação unificada dos pisos, sugiro que eles alcancem patamares de qualidade na prestação de serviços educacionais e de saúde

Bode na sala ou não, o que aconteceria sem os mínimos constitucionais? A evidência empírica nos ajuda a responder. O Brasil vinculou receitas a gastos em educação pela primeira vez em 1934 e só extinguiu esse mandamento constitucional durante governos ditatoriais, como apontou Daniel Barros em seu excelente “País mal educado – Por que se aprende tão pouco nas escolas brasileiras?”. Como consequência, os gastos em educação se reduziram drasticamente? Na verdade, ocorreu exatamente o oposto. No melhor estudo sobre o histórico dos gastos brasileiros nesse setor, Paulo Maduro Junior mostrou em sua dissertação de mestrado que os investimentos em educação como proporção do PIB (Produto Interno Bruto) cresceram depois do fim das vinculações , saindo de 1,05% em 1937 até alcançar 1,22% em 1941 (caindo a partir de 1943 aparentemente em função dos efeitos da Segunda Guerra Mundial). No segundo ciclo, os gastos educacionais relativos ao PIB partiram de 2,59% em 1967 e só regrediram a patamar inferior àquele em 1976, já no bojo do fim do “milagre brasileiro”.

Esses exemplos históricos deveriam no mínimo modular o catastrofismo que tem caracterizado algumas previsões sobre o fim dos pisos, tanto mais que o substitutivo à PEC 186 não afeta diversos normativos infraconstitucionais que protegem os gastos obrigatórios. Concordo com Marcos Mendes e reafirmo que pequenas mudanças na Emenda Constitucional 108, sobre o novo Fundeb, seriam suficientes para resguardar inclusive os repasses a serem feitos via Vaat (Valor Aluno Ano Total). Não obstante, pode-se argumentar que, pressionados de um lado pela enorme rigidez orçamentária do Brasil e, de outro, pela constante demanda por melhores e mais amplos serviços públicos, os gestores poderiam reduzir os investimentos em educação, ainda mais no contexto de uma pandemia cujo desfecho segue incerto, o que reforça quão inoportuno é esse debate na quadra atual. Em perspectiva mais panorâmica, é crucial o artigo de Tassia Cruz e Talita Silva na Education of Economics Review , no qual mostraram que a existência do piso tem protegido a educação e especificamente incentivou gastos adicionais de maior qualidade em municípios que investiam abaixo do mínimo, sem causar externalidades negativas (como aumento do custo de vida).

A obrigatoriedade de gastos com setores sociais não é exclusividade do Brasil, mas sua constitucionalização é uma particularidade da América Latina, onde pelo menos sete países estabelecem vinculações obrigatórias em sua Carta Magna. Nos países-membros da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), a proteção a esses gastos advém de maior seriedade no cumprimento dos direitos constitucionais, aliados a proteções de gastos em sede infraconstitucional . Trajetórias históricas, maturidade institucional e quadros socioeconômicos diferentes podem explicar os caminhos opostos tomados por países da OCDE e da América Latina. Em nosso contexto, parece essencial ainda assegurar algum tipo de proteção firme aos investimentos sociais, mesmo em sede constitucional, pois, como sublinhamos acima, nem mesmo a Carta Magna é estável entre nós. Ademais, na perspectiva da economia política, é natural que gestores (de todos os países) reajam primordialmente a interesses de curto prazo, com vistas à próxima eleição, o que também tenderia a desincentivar investimentos educacionais, cujos retornos demoram a aparecer. Mas, num país como o Brasil, com uma população pouco escolarizada, com pouca capacidade de detectar mudanças qualitativas na educação, e onde vários serviços públicos são precários, a propensão do gestor a investir em outros setores que não o educacional é provavelmente maior.

E se, em vez de extinguir os pisos, o Brasil os unificasse, como de resto propunha o texto original da PEC? Um estudo de pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) tentou estimar o que aconteceria nesse cenário e concluiu que “951 municípios têm maior risco de diminuição dos recursos que financiam a educação, por terem aplicação em educação próxima da fronteira do limite mínimo e aplicação em saúde acima da fronteira mínima. Contudo, 97 municípios têm maior risco de redução de recursos na saúde”. Por si só, o estudo já deveria ser suficiente para mostrar que unificar os pisos atende melhor às diferentes realidades dos municípios brasileiros (e estados, acrescento eu). Se as simulações incluíssem efeitos dinâmicos, além de outros indicadores, como demografia, perfil epidemiológico e sanitário, provavelmente teríamos resultados diferentes dos que eles alcançaram. Não é verdade que estamos em acelerada transição demográfica, com um número cada vez menor de crianças e jovens e maior de idosos? E que esse fato sozinho poderá fazer aumentar o salário dos profissionais da educação ao longo do tempo? E que a prevalência de doenças crônicas tem crescido, a despeito da universalização educacional – além, é claro, da baixa renda –, que não logrou melhorar o perfil nutritivo da dieta ou incentivar as atividades físicas? E que, além disso, a saúde é o único setor social em que a inovação aumenta os gastos em vez de reduzi-los ?

Podemos e devemos debater, em momento oportuno e com a devida profundidade , os pisos constitucionais de gastos em educação e saúde. Entendo que devemos mantê-los, para preservar esses investimentos em direitos há tão pouco tempo universalizados e ainda amplamente violados. Defendo, igualmente, a unificação dos percentuais determinados pela Constituição, compatibilizando a proteção dos direitos com flexibilidade para os gestores. Além de um período de transição, em que pouco ou nada se alteraria, até para resguardar a previsibilidade tão importante para o planejamento e a boa gestão, sugiro que, para que os entes possam se beneficiar da flexibilidade na aplicação unificada dos pisos, eles alcancem patamares (a serem definidos) de qualidade na prestação de serviços educacionais e de saúde. Dessa forma, teríamos tanto a proteção aos investimentos como um incentivo ao alcance de melhores resultados, o que motivaria os gestores municipais e estaduais a gastar melhor. Agrego ainda a necessidade de desenharmos um mecanismo anticíclico, que permita ao país proteger setores essenciais em momentos de crise, como o atual. Fiz sugestão nesse sentido a alguns parlamentares envolvidos com a “ Agenda Social”, anunciada em 2019. Que tal sairmos das dicotomias simplistas e avançarmos rumo a modelos mais aderentes à nossa realidade e mais sofisticados de orçamentação e investimentos sociais?

João Marcelo Borgesé pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas. Foi diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação (2018-2020), Consultor Sênior e Especialista em Educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2011-2018), além de ter ocupado cargos de direção no governo do estado de São Paulo e de gerência no Ministério do Planejamento. Idealizador e cofundador do Movimento Colabora Educação, é mestre em economia política internacional, pela London School of Economics, onde estudou como bolsista Chevening, do governo do Reino Unido.

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