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Adolescentes e jovens são os mais urgentes a serem atendidos em meio à enorme crise educacional instalada hoje no Brasil, mas sua priorização não tem encontrado ressonância nas ações governamentais e menos ainda no diálogo público. Mais especificamente, os alunos do ensino médio (inclusive técnico e profissional) e do ensino superior precisam ser priorizados no retorno às aulas presenciais, quando isso for possível, e nas estratégias para apoiar sua continuidade nos sistemas de ensino.
Devo começar dizendo que, de fato, vivenciamos uma verdadeira crise educacional no Brasil, em função de todos os problemas causados pela pandemia. Como já discuti anteriormente, algumas organizações usam o termo “crise” de maneira equivocada, fazendo com que ele perca a verdadeira dimensão de sua gravidade, que, aliás, nada tem a ver com oportunidade . Afinal, como podem falar de “crise de aprendizagem” em um país que há mais de uma década melhora significativa e continuamente os índices de proficiência em português e matemática dos alunos dos anos iniciais do ensino fundamental e, ainda que em menor proporção, também nos anos finais ? Crise, por definição, não se confunde com problemas crônicos, que se estendem por décadas. Crise subentende tanto um período determinado quanto um nível de agudeza de risco que são incomuns. É isso que vivenciamos hoje.
Ora, os momentos de risco agudo requerem priorização derivada da análise dos riscos e benefícios. Se alguém com deficiência de cálcio que afeta a rigidez óssea sofrer uma fratura, o que fazer? Cuidar do problema crônico (a insuficiência cálcica) ou lidar com a fratura? Todo médico competente lidará primeiro com a fratura e depois buscará mitigar ou anular o problema crônico. É a mesma lógica que preside ordens como “enterrar os mortos e cuidar dos vivos” depois de um terremoto ou “entreguem seus bens e preservem suas vidas” em caso de assalto.
Por que essa lógica não foi aplicada à educação em meio a tamanha crise? Por que não conseguimos gerenciar riscos e benefícios e, a partir dessa análise, priorizar algumas medidas e, especialmente, alguns grupos?
Alguns argumentarão que isso se deve ao princípio da universalidade da educação básica. De fato, esse princípio constitucional, o qual deve ser preservado, por vezes inviabiliza a priorização de grupos populacionais ou áreas determinadas, até por intervenções do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. No entanto, mesmo em outro setor cujo direito à universalidade tem uma abrangência muito mais ampla que o educacional, qual seja, a saúde, é comum priorizar grupos populacionais específicos a partir da gestão de riscos e benefícios. Exemplo corrente é o Plano Nacional de Imunização, que ordena a vacinação segundo critérios de riscos (ainda que com falhas). De todo modo, essa capacidade de priorizar grupos específicos mesmo ao abrigo do princípio da universalidade mostra que este não pode ser usado como argumento para tratar todos como iguais.
Se estamos de acordo que vivemos uma crise educacional nesse momento, não há justificativa alguma para que essa priorização não seja orientada aos estudantes do ensino médio e do ensino superior.
Comecemos pelo que é mais óbvio. Os sistemas educativos têm intencionalidade clara. Eles buscam atrair, manter, assegurar a progressão e a conclusão em níveis adequados de aprendizagem de todos os seus estudantes, com vistas a permitir que seus egressos alcancem o que determina o Artigo 205 da Constituição Federal, a saber: “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Mais do que buscar, eles são obrigados a fazer isso. Todo aluno que não segue essa trajetória constitui um fracasso do sistema (e não do estudante), ainda que as razões para esse insucesso não sejam de responsabilidade exclusiva dos agentes do setor educacional.
Por essa lógica educacional, é impossível não apontar os estudantes do ensino médio e do ensino superior como aqueles de atendimento mais urgente. Se a lógica que preside a priorização não é educacional, cabe aos gestores educacionais trabalharem para a alterar ou, então, explicitar isso às comunidades escolares.
Pela lógica educacional, é impossível não apontar os estudantes do ensino médio e superior como aqueles de atendimento mais urgente
Por exemplo, do ponto de vista dos pais que precisam sair de casa para trabalhar, pode ser mais prioritário reabrir as escolas para as crianças menores, da educação infantil ou do ensino fundamental, que não podem ficar em casa sem a presença de um adulto. Na perspectiva do desenvolvimento infantil precoce, talvez fosse mais adequado priorizar as crianças na primeira infância, sobretudo as de famílias mais vulneráveis, para quem os estímulos ao desenvolvimento motor, emocional e cognitivo nesse período da vida são menos disponíveis no domicílio. Contudo, nem mesmo este último argumento seria suficiente para tirar do topo das prioridades os adolescentes e jovens do ensino médio e superior; no máximo, poderia igualar as crianças da educação infantil a eles. Por quê?
Primeiro, os estudantes do ensino médio e do superior são os que mais fizeram esforços individuais e familiares para alcançar um estágio avançado no cenário brasileiro. Ainda assim, quase quatro em cada dez jovens de 19 anos não concluíram o ensino médio no Brasil e somente 20% dos nossos jovens adentram o ensino superior. Ademais, quase 700 mil jovens de 15 a 17 anos sequer estão na escola no país. De toda forma, entre os matriculados no ensino médio, eles fizeram investimentos superiores a 11 anos, número que chega a 14 para os matriculados no superior.
Segundo, esses estudantes são aqueles que mais receberam investimentos da sociedade brasileira, não importando se eles vieram do setor público (80% das matrículas no caso do ensino médio) ou das famílias. São, ademais, investimentos de tempo e trabalho de dezenas de profissionais (professores, diretores, auxiliares, merendeiras, vigilantes etc.) destinados a permitir que eles alcançassem essa etapa. Em termos econômicos, o investimento público acumulado ao longo da vida escolar nos cerca de 6 milhões de alunos matriculados no ensino médio e 2 milhões matriculados em instituições de ensino superior públicas em 2019 supera os US$ 300 bilhões (em dólares de paridade de poder de compra), ou R$ 660 bilhões.
Terceiro, e mais importante, no quadro brasileiro, os estudantes de ensino médio e superior são os mais propensos a abandonar os estudos. Com efeito, a taxa de abandono no médio é quase o triplo da identificada nos anos finais do ensino fundamental e mais de sete vezes a registrada para os anos iniciais. Esta situação, como é plausível esperar, foi acentuada pela pandemia. Pesquisa recente do Conselho Nacional da Juventude ouviu 68 mil jovens de 15 a 29 anos em março e abril de 2021 e apontou que 43% já haviam pensado em abandonar os estudos , taxa significativamente superior aos 28% que haviam respondido similarmente na primeira onda dessa pesquisa, levada a cabo em abril e maio do ano anterior.
Por seu turno, o Censo da Educação Superior mostra que, cinco anos depois de seu ingresso em um curso superior, apenas 3 em cada 10 estudantes brasileiros o concluíram (para as coortes que ingressaram entre os anos de 2010 e 2015). O que é ainda pior: já no terceiro ano, mais de 50% já desistiram de seus cursos (quer abandonando os estudos, quer mudando de curso).
Ora, o maior fracasso de um sistema de ensino é perder seus estudantes antes da conclusão. Nesses casos, sequer é possível aprimorar o sistema para melhorar a aprendizagem dos estudantes. Podemos correr o risco de ver crescer as taxas já tão altas de abandono do ensino médio e superior no Brasil? Dado que o custo de oportunidade desses jovens é maior que o de crianças de menor idade, posto que eles já podem ingressar no mercado de trabalho e são menos dependentes dos pais ou responsáveis, podemos nos dar ao luxo, como sociedade, de subaproveitar um volume tão alto de investimentos já acumulados?
Poderíamos ainda citar outros argumentos, tais como o maior discernimento desses adolescentes e jovens para cumprir os protocolos sanitários necessários para um retorno seguro às aulas presenciais, mas o risco de abandono parece-me suficiente para que gestores educacionais priorizem esses grupos populacionais. Se isso não ocorrer, além de não termos garantidos os direitos a esses jovens, veremos crescer sobremaneira efeitos negativos: psicossociais (porque esses jovens verão frustrada tão longa trajetória educacional), econômicos (tanto sobre os investimentos já realizados como sobre o potencial de geração de renda futura dos jovens) e sociais (custos sobre serviços públicos demandados por jovens menos escolarizados).
Em suma, estão corretíssimos os clamores para que o Brasil priorize a educação em sua resposta à pandemia, algo que não tem sido feito. Contudo, é preciso também que a educação saiba priorizar suas ações, sob pena de colher resultados ainda mais negativos do que os já registrados.
João Marcelo Borgesé pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas. Foi diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação (2018-2020), Consultor Sênior e Especialista em Educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2011-2018), além de ter ocupado cargos de direção no governo do estado de São Paulo e de gerência no Ministério do Planejamento. Idealizador e cofundador do Movimento Colabora Educação, é mestre em economia política internacional, pela London School of Economics, onde estudou como bolsista Chevening, do governo do Reino Unido.
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