Coluna

João Marcelo Borges

Certa ideia de (ódio ao) Brasil e em que ela pode resultar

17 de agosto de 2021

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Qual educação pode promover um grupo que odeia o país, os brasileiros e nossos elementos constitutivos mais essenciais?

Quando o Nexo me convidou para assinar uma coluna quinzenal sobre educação, acordamos que ela deveria sempre discutir a realidade educacional à luz do conhecimento produzido pela academia, institutos de pesquisa e/ou diretamente pelos educadores. Tenho buscado fazer isso desde então. Hoje, contudo, peço licença aos leitores para apresentar um texto mais ensaístico, que também pode ser compreendido como um desabafo.

Deixo aqui nessa coluna assinada o que tenho falado em conversas privadas há algum tempo: o presidente Bolsonaro e seus aliados mais próximos (ou ferrenhos) odeiam o Brasil. Desse ódio nada de bom pode surgir, menos ainda na educação. Afinal, a educação é exatamente o campo da atividade humana que busca preservar e passar adiante os conhecimentos mais importantes produzidos pela humanidade, bem como de cada nação ou sociedade (sua cultura, pois). Como já afirmei antes, a educação é, em si mesma, uma atividade conservadora, mas que conserva, preserva e projeta para que os educandos possam transformar a realidade a partir do domínio dos conhecimentos (logo, transformando-os também). Ora, se esse governo não quer preservar nada do que somos, que educação ele pode inspirar? Se ele alimenta uma ideia de Brasil que jamais existiu, que esteio pode ter um projeto, educacional ou nacional, que advém de uma quimera?

Devo salientar que o presidente Bolsonaro jamais escondeu suas pretensões. Ainda em março de 2019, portanto poucos meses depois de sua posse, ele afirmou aos jornalistas: “ O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer ”. Essa afirmação foi feita depois de um infame jantar na residência do Embaixador do Brasil em Washington, nos EUA, do qual participaram próceres da extrema direita americana, como Steve Bannon e Roger Kimball, além de Olavo de Carvalho, Ernesto Araújo e um dos filhos do presidente, Eduardo Bolsonaro.

Temos testemunhado o governo Bolsonaro perseguir essa intenção nos mais variados setores, do meio ambiente à economia, dos direitos humanos às relações exteriores e, muito especialmente, na educação e na cultura. Nos dois últimos, a atuação é mais notável porque a reação é mais forte, seja pela magnitude da primeira (que envolve mais de 60 milhões de estudantes e professores), seja pela visibilidade dos agentes da segunda, com acesso privilegiado à mídia. Por outro lado, as intenções não logram sucesso, pois é inviável destruir a partir delas: não se destrói (ou desconstrói, para usar o eufemístico termo) um país ou sua cultura por meio do sistema educativo ou cultural. É possível apagar, restringir ou, para usar um termo mais apropriado ao grupo que preside o país,expurgar fatos, personagens, interpretações e nuances sobre a história do país dos livros didáticos, das aulas e até das manifestações culturais apoiadas por fundos governamentais. Mas não é possível destruí-los, porque os elementos constitutivos da cultura são essenciais, impregnados que estão no DNA das sociedades. E eles não são repassados adiante apenas pelos canais oficiais, mas se reproduzem na dinâmica viva das sociedades, que nenhum governo, por mais despótico, consegue neutralizar integralmente.

Se esse governo não quer preservar nada do que somos, que educação pode inspirar? Se ele alimenta uma ideia de Brasil que jamais existiu, que esteio pode ter um projeto que advém de uma quimera?

Apagar fatos, características e inclusive conhecimentos é algo que o governo Bolsonaro tem feito de forma contumaz. O presidente se refere frequentemente ao Brasil como “país cristão”, negligenciando assim todas as demais religiões com adeptos no Brasil, em particular as de matriz africana. Isso não apenas fere os seguidores de outras religiões, mas também contamina as políticas públicas de saúde reprodutiva e sexual de mulheres, por exemplo, com a centralidade que a pauta do aborto ganhou no discurso e nas proposituras desse governo, em particular no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, mas também no Ministério das Relações Exteriores, que formalizou a adesão do Brasil a uma aliança conservadora em nível mundial . Por sua vez, o beneplácito governamental alimenta grupos radicais, como aqueles que tentaram impedir o aborto (legal) de uma menina de apenas 10 anos, que havia engravidado em cruel caso de estupro. Por óbvio, a dimensão da saúde pública e do direito das mulheres é completamente apagada do discurso oficial.

Nas escolas, essa intenção se manifesta direta e indiretamente. Enquanto colégios militares do Exército vetam a discussão de temas como racismo e homofobia em sala de aula , o MEC (Ministério da Educação) cria um programa para fomentar escolas “cívico-militares”, cuja principal intenção é promover disciplina nos ambientes educativos. Enquanto o mundo caminha para promover criatividade, conhecimento e inovação, o Brasil de Bolsonaro opta pela disciplinarização de comportamentos, vestimentas e, no limite, de pensamento. Enquanto o mundo valoriza a diversidade, traço constitutivo do Brasil, o MEC de Bolsonaro fomenta a padronização; contra a criatividade, a submissão militar, algo tão contrário à “alma brasileira”. Esse governo nos quer apolíneos, quando sempre fomos dionisíacos. Trata-se de um projeto de esterilização dos brasileiros, de impossibilitar a reprodução dos nossos elementos essenciais, que nos forjaram, nos formaram e conformam quem somos.

Dado esse pano de fundo, não surpreende que o primeiro titular do MEC considerasse os brasileiros “canibais”, e nem que seu sucessor (conhecido entre os educadores como o “Inominável”) tenha colecionado e alimentado tantas polêmicas, mesmo depois de ter levado sua balbúrdia incontinenti para uma posição onde recebe um salário anual milionário no Banco Mundial. O atual ocupante do cargo foi o principal personagem da melhor, mais abrangente, mais bem apurada e bem escrita reportagem sobre a educação no governo Bolsonaro, escrita por Luigi Mazza e publicada na Piauí de agosto, cujo título “O Apagão” sintetiza esses quase três anos de bolsonarismo educacional.

Admiradores do Brasil imperial, que consideram um período de grandeza nacional, esse grupo não se preocupa com o fato de que éramos apenas agroexportadores e mineradores baseados em trabalho escravo, com virtual ausência das mulheres nas funções públicas e praticamente sem sistema educacional (enquanto a Argentina já caminhava para universalizar a educação primária). Muitos de nós tentamos explicar as características políticas, sociais e econômicas daquele período a esse grupo, na expectativa de que revejam sua leitura tão rósea do século 19 no Brasil. Por que falhamos? Porque é exatamente isso o que eles amam e defendem: um país de aparência majestosa, que exclui os direitos dos mais pobres, dos negros, das mulheres. Um país de “universidade para poucos”, um país de “invisíveis”.

Há, claro, boas iniciativas vindas de Brasília e mesmo do MEC, como eu mesmo já comentei , mas elas raramente superam o poder destruidor de sua hierarquia: quando o fazem e são lançados, depois não se concretizam. A essa altura, é preciso afirmar sem receio: o melhor que pode acontecer ao Brasil é a paralisia do MEC. Se o Congresso Nacional conseguir garantir os recursos necessários para o ensino superior e a educação básica, será melhor para o país que o governo Bolsonaro não consiga implementar nada na educação. Porque, se o fizer, será ainda pior para o Brasil, país que odeiam.

João Marcelo Borgesé pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas. Foi diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação (2018-2020), Consultor Sênior e Especialista em Educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2011-2018), além de ter ocupado cargos de direção no governo do estado de São Paulo e de gerência no Ministério do Planejamento. Idealizador e cofundador do Movimento Colabora Educação, é mestre em economia política internacional, pela London School of Economics, onde estudou como bolsista Chevening, do governo do Reino Unido.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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