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Alicia Kowaltowski

O que aprendi em 2021: um ano de metabolismo

29 de dezembro de 2021

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A possibilidade de entender melhor cada progresso científico é o que me traz ânimo para o futuro

Terminamos mais um ano, marcando mais uma chegada no ponto arbitrário da trajetória da Terra em torno do Sol que nós humanos resolvemos considerar um novo início. Novamente foi um ano difícil para todos, e especialmente para profissionais de saúde e cientistas, lidando com a continuidade das pandemias brasileiras, sejam estas virais, anticientíficas, de fake news, de desfinanciamento do que deveria ser prioritário, ou negacionistas. Mas foi também um ano de progressos científicos excepcionais, e eu certamente lembrarei sempre dos grandes progressos na minha área de metabolismo.

O ano começou com uma descoberta super instigante no meu laboratório: a persistente dra. Pâmela Kakimoto descobriu, em meio a todas as dificuldades do Brasil em pandemia, que células do fígado, quando na presença de excesso de gordura, aumentam o metabolismo de glicose. Isso é muito inesperado porque a glicose é um carboidrato, molécula bem diferente de gorduras, e que é metabolizada por uma série de reações químicas que não tem nada a ver com o metabolismo de gorduras. Embora ela tenha cuidadosamente investigado o motivo para esse aumento de metabolismo de carboidratos (que surpreendentemente depende de radicais livres gerados nas nossas mitocôndrias ), ainda não sabemos para que ou quais as consequências, se é que elas existem, desta surpresa metabólica. O que sabemos é que não é algo sem importância, pois um outro grupo de cientistas que estava trabalhando ao mesmo tempo que nós achou o mesmo resultado em um modelo bem diferente. O fato de um achado científico novo e inesperado “aparecer” em mais de um estudo sugere que é algo importante, e estou curiosa para, no futuro, descobrir os desdobramentos desta descoberta.

Não foi a única descoberta inesperada de 2021. Por dar aulas de graduação para estudantes de medicina veterinária, fico sempre de olho nas descobertas metabólicas não-humanas, e este ano tivemos várias interessantes. Descobriram que aves usam uma espécie de curto-circuito em mitocôndrias (as baterias das células) de células do sangue (hemácias) para se aquecer . Isso é curioso porque nós humanos não temos mitocôndrias nas hemácias, então não podemos usar esse mecanismo para aquecer nosso sangue. Em vez disso, usamos o mesmo mecanismo de curto-circuito em nossos tecidos ricos em mitocôndrias para gerar calor . Mamíferos adaptados ao frio como as lontras usam cerca de 40% da energia gerada por este “curto-circuito” nos seus músculos para se aquecer, conforme aprendemos num estudo fofíssimo publicado esse ano. 2021 também nos trouxe novos conhecimentos sobre o metabolismo de golfinhos, “pikachus” e pandas, mas, em meio a múltiplos ataques governamentais anti-ciência aos quais me senti na necessidade de comentar nessa coluna, ainda não tive espaço para destrinchar esses achados curiosos para os leitores do Nexo – fica aqui um pequeno teaser sobre assuntos que ainda tenho vontade de abordar aqui em 2022.

O metabolismo humano ganhou um presente científico enorme em 2021: a publicação de uma base de dados de mais de 6.000 pessoas cujo metabolismo foi estudado através de água duplamente marcada, um método que permite avaliar o metabolismo durante atividades normais do dia a dia, e não somente em repouso. Análises desta base de dados mostraram algo surpreendente: não existe alteração de gasto de energia na meia idade ; esta permanece constante desde o início da idade adulta até após os 60 anos. Deste modo, a única maneira de explicar o ganho de peso que muitos percebem na meia idade é um aumento da ingestão alimentar. Outro estudo ligado a esta base de dados confirmou que exercício físico é pouco eficiente para perder peso , pois, além de gastar pouca energia comparado ao que precisamos para manter órgãos vitais como fígado, cérebro e rins funcionando, leva a uma diminuição compensatória dos gastos de energia durante o repouso. Esse achado não é inesperado para nós cientistas da área (embora, pela repercussão da coluna em que escrevi sobre isso, me parece que seja novidade para muitos). O achado foi apenas melhor quantificado nos novos estudos com essa nova e extensa base de dados metabólicos humanos que ganhamos em 2021. Aguardo com curiosidade o que meus colegas descobrirão com esses dados em 2022.

Estou extremamente animada também com o novo conhecimento que sairá do meu laboratório em 2022. Na nossa reunião final de 2021, discutimos projetos em andamento que já mostram resultados instigantes. Dentre eles, aprendemos como melhorar a memória alterando mitocôndrias, aprendemos como o cálcio regula o metabolismo do fígado, descobrimos que prevenir obesidade com restrição calórica pode não ser bom para todos os nossos órgãos, desvendamos um novo mecanismo que regula a liberação de insulina para o corpo, achamos uma nova maneira de regular a autofagia (processo de limpeza interna das nossas células) e talvez tenhamos encontrado um mecanismo completamente novo envolvido na manutenção do peso corporal. São resultados gerados por uma equipe incrível de jovens cientistas, ainda resilientes mesmo com condições cada vez mais difíceis, que tenho o privilégio de abrigar no Laboratório de Metabolismo Energético na USP (Universidade de São Paulo). Estes são resultados que, juntos, esperamos poder avançar e complementar; a possibilidade de entender melhor cada um destes achados é o que me traz ânimo para o novo ano.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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