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Este mês de setembro marca o aniversário de 20 anos da 3ª Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, na África do Sul. O evento global encerrou os seus trabalhos no dia 8 de setembro de 2001, apenas alguns dias antes dos atentados terroristas de 11 de setembro, em Nova York. A sensação de que o mundo nunca mais seria o mesmo, com as imagens exibidas ao vivo, mundo afora, dos aviões lotados sendo lançados contra as torres gêmeas do World Trade Center, ficaram gravadas na memória coletiva da humanidade.
A agenda e discussões de Durban nunca foram tão atuais, diante do recrudescimento e da renovação de pensamentos racistas, como há muito tempo não víamos. No Brasil, nunca esteve tão claro o quanto o desprezo e o ódio aos pobres, negros e indígenas se sustentam na persistência do racismo e dos valores de uma suposta supremacia branca européia. O racismo estrutura as nossas desigualdades e constitui a base do nosso autoritarismo; é o alimento ideológico que sustenta a violência seletiva que marca tão profundamente a nossa formação histórica. Não se trata de um racismo qualquer, mas um racismo que herdamos da desumanização das pessoas negras decorrente de três séculos e meio de escravismo, e de uma ideologia de branqueamento que se alinha com o pensamento colonial moderno.
O colonialismo requer a desumanização do negro e a supremacia do branco-europeu. O moderno regime de castas é o reflexo dessa complexa gradação de humanidades, onde na ponta da negação completa se encontra o negro-africano e, na outra ponta, o branco-europeu, “naturalmente” superior. A branquitude é o sistema de poder que gerencia as nuances de pertencimento entre esses dois extremos (e as diferentes estratégias de “branqueamento”) que vai colocar cada um no seu devido lugar, como bem elabora Isabel Wilkerson em um instigante livro publicado recentemente .
A história da convocação da Conferência Mundial Sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, aprovada pela Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) em 1997, foi muito bem retratada pelo embaixador brasileiro J.A. Lindgren Alves . Na ocasião, a convocação parecia o encerramento perfeito para um ciclo de conferências mundiais iniciado na década de 1990, que revisitou todos os grandes temas do desenvolvimento, firmando compromissos e estabelecendo metas a serem atingidas pelos países membros da ONU, sintetizadas nos Objetivos do Milênio , no ano de 2000.
A agenda de Durban, por sua vez, se dispunha a enfrentar o que, aquela altura, já eram alguns dos grandes temas do século 21, em particular aqueles referidos ao crescimento de conflitos e de violências decorrentes de políticas de ódio, assim como o surgimento de novos focos de totalitarismos, nutridos por um processo de globalização que acirrou as desigualdades mundiais. Os ataques terroristas às Torres Gêmeas apenas três dias após o encerramento dos trabalhos, quando várias das delegações sequer tinham voltado aos seus países, soou como confirmação da urgência dos acordos firmados, mas também como a morte prematura das esperanças nascidas em Durban. A “guerra ao terror” conduzida pelos Estados Unidos e seus aliados – em seus momentos mais dramáticos, à revelia das recomendações das Nações Unidas – fez terra arrasada das expectativas de uma nova ordem global baseada no multilateralismo e na agenda de direitos construída ao longo do ciclo de conferências sociais da ONU.
O fim da presença militar dos EUA no Afeganistão, a retomada do poder pelas forças do Taleban e a desastrosa retirada das forças aliadas de Cabul em 2021 são o retrato acabado do fracasso da estratégia de guerra infinita ao terror, iniciada justamente com a derrubada do Taleban, imediatamente após os atentados de 11 de setembro, por conta de seu apoio a Al Qaeda e acolhimento de Osama Bin Laden em seus territórios. Este talvez seja um bom momento para revisitar as promessas não cumpridas de Durban e, principalmente, a esperança de um mundo capaz de se unir contra todas as formas de racismo e intolerância.
No Brasil, a conferência de Durban mobilizou amplamente governo e sociedade civil. Foi objeto de muitas conferências preparatórias, encontros e pesquisas produzidas por órgãos governamentais e não governamentais. Marcou uma guinada importante na posição do estado brasileiro no reconhecimento da centralidade do racismo na estruturação das desigualdades e uma inflexão histórica na nossa política externa. Devemos, em grande parte, à Durban a elevação da luta contra o racismo como tema de destaque no debate público nas últimas duas décadas. A mobilização de atores governamentais e não governamentais, em particular as organizações do movimento negro, ao longo do processo preparatório para a conferência, abriu um leque completamente novo de possibilidades para o enfrentamento da questão, assim como sobre o papel do estado e da sociedade civil no combate e/ou na reprodução do racismo.
Muito da história da luta contra o racismo no Brasil, desde o início do século passado, tem a ver com esse esforço de romper o silêncio envergonhado, visto por alguns como um aspecto positivo
As organizações de mulheres negras brasileiras tiveram papel absolutamente central na construção da agenda e na definição dos temas que vieram a ser tratados ao longo de todo processo preparatório para a conferência de Durban no Brasil. Esse protagonismo ficou mais claro durante a reunião preparatória regional que ocorreu em Santiago do Chile, onde organizações de mulheres brasileiras, em particular negras, como o Geledés, Criola, CFemea, Articulação de Mulheres Brasileiras e a Articulação Brasileira de Mulheres Negras, tiveram um papel central, em diálogo com as demais organizações representantes das populações afrodescendentes nas Américas, na inclusão de temas prioritários na agenda discutida em Durban. Como parte do reconhecimento do papel desempenhados pelas mulheres negras, a brasileira Edna Roland, então diretora da organização Fala Preta, pesquisadora e militante do movimento negro, foi escolhida como relatora-geral da conferência.
Importante destacar o quanto o processo preparatório para Durban contribuiu para a produção de dados e informações oficiais sobre o racismo no Brasil. O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) se destacou como o principal órgão governamental a gerar informações atualizadas sobre os impactos da discriminação racial nas desigualdades brasileiras, produzindo estudos seminais que subsidiaram a delegação oficial brasileira, como aqueles conduzidos pelo economista Ricardo Henriques .
A conferência de Durban também marcou a entrada em cena no cenário internacional, pela primeira vez, do governo brasileiro reconhecendo o papel do racismo na conformação da estrutura social brasileira e das desigualdades que atravessam a distribuição de direitos, bens e recursos econômicos e sociais do país.
Estivemos, na verdade, ao longo das últimas décadas, participando de um processo fundamental de ruptura de um dos principais – talvez o mais importante – pilares de sustentação do racismo no Brasil: o silêncio. Silêncio tão conhecido de negros, mulatos, morenos, afrodescendentes ou qualquer outra denominação atribuída à tonalidade da pele – que sofrem ao longo das suas vidas com as consequências do racismo. O silêncio que acompanha os homens negros, especialmente os jovens, todas as vezes que se vêem como os únicos “suspeitos” retirados dos ônibus nas batidas policiais, acompanhados pelos olhos baixos dos demais passageiros.
Muito da história da luta contra o racismo no Brasil, desde o início do século passado, tem a ver com esse esforço de romper o silêncio envergonhado, visto por alguns como um aspecto positivo – a vergonha de ser racista – em uma sociedade que produziu fenômeno dos mais peculiares na história da humanidade, o do “racismo sem racistas”. Um silêncio que condenou, ao longo de nossa história, negros e negras a uma espécie de “solidão civil”, já que a esfera pública construída pela nossa limitada democracia não tinha espaço para o tema racial. Um silêncio que representava uma verdadeira interdição político-cultural que inibia até mesmo a formulação do problema. Um silêncio que veio sendo quebrado, felizmente, graças a luta constante do movimento negro e, em particular, das juventudes negras das periferias e favelas que renovaram o campo de disputas na sociedade civil e que não aceitam mais serem colocados em posição de subalternidade.
A declaração e o plano de ação de Durban se constituem, talvez, no documento mais completo a tratar dos dilemas colocados pelo aumento da intolerância e do racismo no marco da globalização. Temas como reparação, colonialismo, escravidão e tráfico de escravos, além da responsabilidade dos governos em enfrentar as desigualdades geradas para a população afrodescendente e africana, ganharam status internacional. Em certa medida, Durban quebrou o silêncio global sobre o racismo e permanece sendo um guia importante na luta por igualdade.
Atila Roqueé historiador, cientista político e diretor da Fundação Ford no Brasil. Exerceu papel de liderança em diferentes organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior. Foi diretor-executivo da ActionAid International nos EUA e do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Antes de assumir a Fundação Ford, em 2017, foi diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. Faz parte do Conselho Diretor do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).
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