Coluna
Cristina Pinotti
Só a união das vítimas da corrupção é capaz de mudar o jogo
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Há dois anos foi lançado o livro “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas” (Portfolio-Penguin), que organizei e do qual sou coautora. Nele, a operação italiana é descrita e analisada, 24 anos após seu início, por dois dos magistrados que a conduziram – Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo. À época em que foi escrito, a operação brasileira estava no seu quinto ano, e foi analisada pelo então juiz Sergio Moro, em um capítulo, e pelos procuradores Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon, em outro. Um generoso prefácio foi escrito pelo ministro Luís Roberto Barroso, e eu me encarreguei de fazer um survey sobre teoria da corrupção e uma análise dos impactos econômicos da corrupção no Brasil e na Itália. Revisito, aqui, algumas das ideias presentes no livro à luz do fim da Lava Jato e das decisões recentes do STF (Supremo Tribunal Federal) a ela relacionadas, com ênfase no papel do apoio da sociedade a operações contra a corrupção.
Dediquei o livro “às vítimas (difusas e anônimas) da corrupção”, e a defesa dessas vítimas – os cidadãos comuns – é o fio que une todos os capítulos. É sobre o cidadão comum que recaem mais pesadamente a carga excessiva de impostos e os efeitos nocivos do elevado endividamento de Estados inchados. É o cidadão comum que recebe em troca serviços públicos degradados pelos desvios de recursos que ocorrem com a corrupção. Ele fica indignado por pagar muito e receber pouco, mas os “desvios” permanecem convenientemente envoltos em densa névoa, dificultando a sua apuração e punição. Assim são os crimes de corrupção: prejudicam muitas pessoas, mas nenhuma em particular. Só a união das vítimas, ainda que difusas e anônimas, é capaz de mudar o jogo e suas regras. Qualquer distração pode ser fatal, dando início a avalanches, como revelam os dois episódios que descrevo a seguir.
No dia 13 de julho de 1994, enquanto os italianos torciam pela sua “Squadra Azzurra” contra a Bulgária, na semifinal da Copa do Mundo que definiria o adversário do Brasil na final, Alfredo Biondi, então ministro da Justiça, apresentava ao Conselho de Ministros o decreto que ficou conhecido como Decreto Biondi ou “Salva Ladri” (salva ladrões). Os jornais do dia seguinte, empolgados com a classificação da Itália, pouco ou nenhum destaque deram à notícia. Começava, assim, a reação do sistema político que pôs fim à operação Mani Pulite. Junto com duas anistias, uma fiscal e outra a empresas envolvidas com corrupção, o decreto impedia a prisão preventiva para investigados em crimes de corrupção, extorsão, peculato, financiamento ilícito de partidos, entre outros. De aplicação imediata, fez com que cerca de 3.000 presos fossem liberados, dentre os quais estavam algumas centenas de investigados pela Mani Pulite. Devido à forte reação dos magistrados que conduziam a operação e da população, que foi às ruas de Milão protestar, o decreto (que era inconstitucional) acabou não sendo sancionado pelo parlamento e perdeu a validade. Mas o estrago estava feito: inaugurava-se um período de 15 anos de sucessivos retrocessos na identificação e punição dos crimes de corrupção e de limitação das ações do Judiciário.
Ao mesmo tempo, uma campanha difamatória contra o Judiciário, comandada pelos defensores dos acusados, minou o apoio da população à operação. O então magistrado Gherardo Colombo, por exemplo, foi vítima de tentativa de depósito em seu nome na Suíça. Dossiês com falsas informações foram fartamente distribuídos à imprensa. O ataque tóxico encontrou terreno fértil em boa parte dos jornais, à época dependentes do financiamento do Estado e das grandes empresas envolvidas em corrupção. A partir de então sofreu a economia do país, que se fechou aos investimentos externos, perdeu eficiência e acabou entrando em estagnação. Só nos últimos anos a agenda de reformas foi retomada, e ganha impulso agora, sob a liderança de Mario Draghi, um ferrenho defensor da integridade e eficiência nas obras e serviços públicos.
Durante os dois anos anteriores, a operação italiana incriminara mais de 4.000 pessoas, sendo 4 ex-primeiros-ministros, cerca de 130 parlamentares, 12 ministros de Estado e empresários de grandes empresas como ENI, Enel, Fiat, Ferruzzi, etc. Se fossem mantidas as proporções por habitante, teríamos no Brasil cerca de 16 mil processos e 3.000 mandados de prisão. Aqui, na 13ª Vara Federal de Curitiba, sob o comando dos juízes Moro, Hardt e Bonat, foram denunciadas cerca de 550 pessoas, tendo 174 sido condenadas. Além dessas, 102 pessoas foram denunciadas ao STF em virtude do foro privilegiado, gerando 9 ações penais e apenas 4 condenações e 2 absolvições. Os demais casos encontram-se em fases diversas de andamento.
Cristina Pinottié graduada em administração pública pela EAESP-FGV e cursou o doutorado em economia na FEA-USP. É sócia da A.C. Pastore & Associados desde 1993. Antes trabalhou nos departamentos econômicos do BIB-Unibanco, Divesp e MB Associados. Concentra seus trabalhos na análise da macroeconomia brasileira, com ênfase em temas da política monetária, relações do país com a economia internacional, e planos de estabilização. Nos últimos anos tem se dedicado ao estudo da teoria da corrupção e da história da operação Mãos Limpas, na Itália. É autora de diversos artigos e livros. Escreve mensalmente às sextas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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