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Alicia Kowaltowski

Cafeína: é a dose que faz uma molécula se tornar uma toxina

23 de março de 2022

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É possível consumir quantidades usuais de produtos cafeinados sem se preocupar com um risco iminente de intoxicação

Em janeiro de 2021, o britânico e personal trainer Thomas Anthony Mansfield, de 29 anos, faleceu após tomar uma dose excessiva de cafeína, que comprou para usar como suplemento antes de se exercitar. O produto recomendava o consumo de até 300 miligramas por vez, que equivale ao peso de meras seis gotas de água, mas não providenciava medidor para essa quantidade pequena. Ao tentar usar uma balança culinária para a medida, que não tinha a sensibilidade para pesar menos que duas gramas, o britânico errou no cálculo e acabou ingerindo uma quantidade equivalente a cerca de 200 xícaras de café, e morrendo em consequência de intoxicação por cafeína.

O caso traz à tona vários problemas, além do evidente absurdo de um suposto profissional de saúde que usa uma balança inadequada para pesar algo e usar como suplemento, mesmo devendo saber que, como qualquer outra molécula ( até mesmo a água! ), a cafeína é tóxica se ingerida em excesso. Um dos problemas é que a cafeína foi vendida como suplemento, e não medicamento. O mercado de suplementos não é regulamentado como o de medicamentos , podendo vender basicamente qualquer coisa, sem comprovação que os supostos efeitos resultantes do seu consumo realmente ocorram, e com poucos estudos de segurança. Além de fazer lobby forte contra maior regulamentação, as empresas que vendem suplementos se usam da artimanha de sugerir que são seguros por conter moléculas naturais, se aproveitando da impressão completamente errônea que a maioria das pessoas têm de que moléculas provenientes da natureza são melhores para nossa saúde. De fato, a cafeína é natural, mas para humanos é tóxica em doses cerca de 40 vezes menores que o temido herbicida glifosato. Outros produtos naturais bastante tóxicos (mais que a cafeína) incluem a rotenona (produto de certas plantas que já foi usado como inseticida em agricultura orgânica ) e a vitamina D (que, como outras vitaminas, infelizmente também não tem sua venda controlada, a despeito de sua toxicidade quando em excesso). E o problema da toxicidade destes suplementos continuará enquanto persistir a falta de regulamentação: em resposta à morte do britânico, a empresa que vendeu o suplemento apenas respondeu que agora inclui um dosador junto ao pote, sem, no entanto, apresentar outras medidas de segurança para evitar intoxicação com um produto cuja ingestão de apenas uma colherada é suficiente para causar morte.

Mas a cafeína não é sempre tóxica, e de fato apresenta vários efeitos interessantes e benéficos, razão pelo qual a maioria dos adultos a consomem diariamente, em níveis seguros de em torno de 100 a 300 miligramas por dia (aproximadamente 1-3 xícaras). O consumo de cafeína nestes níveis é muito bem tolerado: numa análise de mais de 20 mil americanos , foi encontrado que o risco de morte por qualquer causa era inclusive maior em pessoas com consumo muito baixo de cafeína, abaixo de 200 miligramas por dia. Esses dados são apenas correlativos, o que significa que não é necessariamente a cafeína em si que causa a diminuição de morte – pode ser que pessoas que têm mais problemas de saúde abstenham mais do seu consumo, por exemplo – mas é uma comprovação que se pode consumir quantidades usuais de produtos cafeinados sem se preocupar com um risco iminente de intoxicação.

Quem consome produtos com cafeína (incluindo café, certos chás, refrigerantes e bebidas energéticas) sabe que ela possui efeitos estimulantes, diminuindo o cansaço e o sono e aumentando o desempenho em exercícios físicos. Estes efeitos acontecem porque a molécula interage com diferentes moléculas nos nossos corpos, mudando sua função. No cérebro, a cafeína inibe receptores de adenosina, responsáveis pela sensação de sonolência, além de interferir nos sinais cerebrais promovidos por dopamina, que, dentre outras coisas, modula nossas respostas de prazer. Fora do cérebro, a cafeína inibe uma enzima chamada fosfodiesterase, que (dentre outros efeitos) modula no nosso corpo a ação de adrenalina, um hormônio que nos prepara para situações de perigo. Isso faz com que várias alterações do corpo que nos preparam para lutar ou fugir em situações de perigo sejam exacerbadas na presença de cafeína, incluindo aumentar a quantidade de nutrientes no sangue para os músculos poderem funcionar em situação de fuga. Interessantemente, estes efeitos da cafeína são parecidos com os de uma molécula bem semelhante em termos de estrutura química mas um pouco menos ativa, a teobromina, que é componente importante do chocolate.

Deste modo, globalmente, tanto a cafeína quanto a teobromina promovem efeitos que consideramos positivos, como aumento da atenção e capacidade física, mas também efeitos negativos, como insônia, tremor e aumento da frequência cardíaca. O balanço entre estas consequências depende da dose ingerida e da resposta individual da pessoa, podendo trazer desde uma sensação prazerosa e que auxilia na produtividade, a um mal-estar passageiro (com aumento de frequência cardíaca e pressão arterial), até a morte em altíssimas doses, que podem ser atingidas com o suplemente purificado.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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