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Olavo Amaral

Publicação de prestígio: uma figurinha dourada em seu currículo

06 de dezembro de 2022

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Reações à decisão da eLife de deixar de rejeitar artigos escancaram o valor da escassez no inexplicável mercado da publicação científica

Como quase todo mundo com filhos em idade escolar, passei o último mês em função do álbum de figurinhas da Copa. E me acostumando com inovações no formato, como as “figurinhas gold”, cromos raros e desnecessários que mobilizaram um mercado maluco no país.

Em particular, gastei saliva para convencer meu enteado de 7 anos de que eu não pagaria 150 reais por uma figurinha dourada com o rosto do Messi. E mais do que isso, para fazê-lo refletir sobre por que ele gastaria isso tudo num pedaço de papel.

A resposta é óbvia: a figurinha vale porque é rara, seguindo a lei da oferta e demanda . Pode não servir para nada, mas impressiona os amiguinhos quando levada para a escola. Levando a lógica adiante, pode mesmo valer porque é cara , ao destacar o status de quem é capaz de comprá-la.

Mas por que estou falando disso tudo? Obviamente, para falar do mercado de publicação científica, um dos mais disfuncionais da história da humanidade . Por conta de um sistema no qual artigos em revistas de prestígio têm um peso desproporcional na distribuição de recursos e empregos, cientistas estão dispostos a pagar milhares de dólares para ver seu trabalho publicado por elas – ou a transferir seu copyright de graça para que editoras lucrem com assinaturas e paywalls.

O desconforto com o sistema tem feito financiadores de pesquisa e instituições acadêmicas – que no fim das contas, acabam pagando a conta – buscarem alternativas de publicação para a ciência que financiam. A solução, porém, depende de ação coordenada: como pesquisadores têm de manter sua reputação frente a múltiplos avaliadores, ninguém é capaz de quebrar o sistema sozinho.

Em 2012, três grandes financiadores – o Howard Hughes Medical Institute nos EUA, a Wellcome Trust no Reino Unido e a Sociedade Max Planck na Alemanha – juntaram forças – e recursos – para criar a eLife , uma revista de acesso aberto para competir com as tradicionais Cell, Nature e Science . Com o prêmio Nobel Randy Sheckman como editor, tentaram criar uma marca baseada na transparência – com um processo consultivo entre revisores e publicação dos pareceres – e, pelo menos na origem, na ausência de taxas de publicação.

A revista nunca chegou a alcançar o status das rivais, mas virou uma concorrente de respeito. Sua popularidade, porém, fez com que a partir de 2017 ela passasse a cobrar dos autores para ser sustentável, com taxas de até US$ 3.000 por artigo – menores do que as de concorrentes, mas ainda assim estratosféricas para realidades como a brasileira. Ao invés de mudar o sistema, a revista parecia ter se tornado mais uma parte dele.

Assim como uma figurinha dourada do Messi, o selo da eLife valia por sua escassez – como nem todo mundo o recebe, ele podia impressionar financiadores, instituições e cientistas

Em 2019, porém, Scheckman deu lugar a Michael Eisen – geneticista e folclórico ativista de ciência aberta. No início do século 21, Eisen fora um dos fundadores da PLoS ( Public Library of Science) – uma das iniciativas de maior sucesso em publicação de acesso aberto, mas que tampouco chegou a mudar radicalmente o mercado. Também foi pré-candidato ao Senado americano em 2018, ainda que não tenha chegado às primárias.

Parece peculiar que Eisen – que anda com uma camiseta dizendo “journals aren’t real” (“revistas não são reais”) e descreve os periódicos científicos como um acidente histórico anacrônico do qual deveríamos nos livrar – tenha se tornado editor de um deles. Dito isso, talvez seu plano fosse justamente quebrar o sistema por dentro – já que fazer isso por fora tem sido notoriamente difícil.

Em 2021 ele já tinha implementado um processo de submissão de artigos exclusivamente a partir de preprints – efetivamente tornando a revisão posterior à publicação dos artigos. No início de novembro de 2022, anunciou uma mudança ainda mais radical: a eLife deixaria de aceitar ou rejeitar manuscritos , se limitando a fornecer pareceres públicos de revisão e avaliação editorial, com críticas e sugestões que os autores seriam livres para seguir ou não, a um preço de US$ 2.000.

A notícia foi recebida de forma heterogênea pelo mundo acadêmico, que oscilou entre o entusiasmo, a perplexidade e o repúdio. Alguns questionaram se a ausência de rejeição não daria um selo de “revisado por pares” a artigos duvidosos – já que ninguém para de fato para ler pareceres de revisores. Críticos mais vocais acusaram a eLife de usar um modelo “ bait-and-switch ” – tendo posado como um periódico tradicional para atrair autores e depois mudar radicalmente seu modelo. O virologista Paul Bieniasz escreveu um artigo dizendo que a revista teria sua reputação destruída pela mudança e perguntaria “ o que vale um artigo na eLife agora ?”

Ao parar para pensar na pergunta retórica de Bieniasz, porém, a resposta é apenas óbvia : se o artigo segue sendo o mesmo, seu valor intrínseco não deveria mudar. Mas a ideia de que um artigo “vale por onde sai” – e pela dificuldade em ser aceito por lá – é tão martelada na cabeça dos cientistas por aberrações como o Sistema Qualis da CAPES que mesmo cientistas com PhD não se dão conta dessa obviedade.

Se alguns estavam preocupados com a perda de reputação, outros passaram a criticar o preço. Quem, afinal, pagaria US$ 2.000 para ter seu artigo revisado em público – especialmente considerando que iniciativas como o Peer Community In se propõem a fazer o mesmo de graça? Nesse sentido, alguém tuitou ironicamente que revisaria um artigo publicamente por US$ 1.999 , sem controle de acesso.

A resposta de Eisen foi igualmente irônica: “Pelo visto vocês que zombam da ideia da revisão por pares como serviço realmente só estão pagando as revistas pela marca.” Na prática, ele tem razão: US$ 2.000 parece muito por uma revisão – em particular quando os revisores não são remunerados . Mas enquanto a revista recusava artigos, um preço mais alto do que esse era visto como normal – ainda que o serviço fosse o mesmo, exceto pelo fato de não rejeitar ninguém.

O que, no fim das contas, apenas escancara onde jaz o valor de mercado da publicação científica . Assim como uma figurinha dourada do Messi, o selo da eLife valia por sua escassez – como nem todo mundo o recebe, ele podia impressionar financiadores, instituições e cientistas. Mas torne o que é raro comum, e ele passa a transparecer pelo que de fato vale.

E seria a revisão por pares apenas um pedaço de papel colorido ? A comparação talvez seja exagerada, mas o valor atribuído ao processo também é: o preço de uma única revisão da eLife equivale a sete meses de bolsa de um mestrando no Brasil. Nesse sentido, experimentos como o de Eisen podem ajudar a extirpar o valor da escassez, e levar o mercado a um equilíbrio em que pesquisadores paguem por quanto o serviço vale. E mesmo que tudo dê errado, pelo menos escancaram o quanto cientistas se parecem com crianças de sete anos atrás de figurinhas douradas em seus currículos.

Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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