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Alicia Kowaltowski

Não existe liberdade para as políticas mortais

08 de março de 2023

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Políticos poderiam utilizar muito melhor seu tempo planejando um grande plano de conscientização e incentivos sobre a importância coletiva da vacinação global

Em 17 de fevereiro, a USP (Universidade de São Paulo) revogou a obrigatoriedade de comprovação de vacinação contra covid-19 para os membros da comunidade universitária. A ação se tornou necessária para atender à lei estadual 17.629/2023, promulgada pelo governador Tarcísio de Freitas, proibindo a exigência de vacinação contra a covid-19 para acesso a locais públicos ou privados no estado.

A lei foi escrita e promovida por uma equipe liderada pela deputada Janaina Paschoal, que é professora da USP, e justifica sua necessidade para corrigir problemas como trabalhadores ou estudantes sendo impedidos de atuar por não atender à exigência de vacinação. Na prática, porém, o efeito direto da lei é pífio, pois a comunidade universitária com a qual a deputada exemplifica esta necessidade é ubiquamente pró-vacina. Como exemplo, dos 8.200 estudantes aprovados no vestibular para ingresso na USP este ano, somente 34 não estão completamente vacinados (ou com justificativa válida para não vacinar) contra covid-19.

Mas será que não devemos ter leis protegendo os direitos destes 34 estudantes a escolher se irão ou não se submeter à vacinação contra covid? Será que eles não deveriam poder decidir livremente se querem ou não se submeter aos possíveis riscos que a deputada sugere haver associados às vacinas contra a doença? Aqui cabe uma observação sobre riscos relativos na covid: a mortalidade da doença na maioria dos países desenvolvidos (que, supõe-se, tem testagem e tratamentos adequados) atinge em torno de 1% da população contaminada. Por outro lado, o risco de efeito adverso grave de vacina só está associado a vacinas de vetor adenoviral não replicante, que não inclui as atuais vacinas bivalentes que começam a ser distribuídas no Brasil. Mesmo nestas vacinas, o risco é estimado em torno de uma pessoa em 2 milhões – digo que o risco é estimado porque problema de saúde grave após vacina é algo tão, tão raro que ainda não temos dados suficientes para separar isso dos outros efeitos das vidas vastamente das pessoas na população geral, formada por indivíduos que vão todos eventualmente ficar doentes e morrer por alguma causa.

Pode até parecer que um risco de um em dois milhões para a vacina é substancial, considerando que nos submetemos a este procedimento ativamente e coletivamente. Mas vale o efeito de comparação matemática aqui: se colocado em tempo, um evento que ocorre em 1% dos dias (equivalente à taxa de óbito por covid) acontece três ou quatro vezes por ano, enquanto um evento a cada dois milhões de dias ocorre uma vez a cada 5.500 anos! Pessoalmente, acho que saber distinguir entre probabilidades como estas é necessário para universitários bem preparados, o que coloca em questão a qualificação dos 34 indivíduos não vacinados na USP. Justamente pela diferença de probabilidades, me parece irresponsável também apresentar vacinas como algo que têm risco dentro da discussão que sustenta essa nova lei, considerando não somente quão irrisórios esses riscos são, mas também a dificuldade que nossa população geral possui em compreender proporções, riscos e benefícios relativos.

Mas a liberdade individual é de fato essencial em vários aspectos da vida, mesmo que seja uma liberdade para proteger grupos muito minoritários, como os 34 universitários não vacinados. Não questiono a importância da proteção ao livre-arbítrio, desde que não limite liberdades ou seguridades dos outros numa sociedade. E é neste ponto que a obrigatoriedade de vacinação entra, pois imunização não funciona como um ato individual, e sim como ação coletiva. Nenhuma vacina é 100% eficaz, nem na sua habilidade de prevenir doença grave ou morte, nem na capacidade de evitar se infectar com um patógeno. O agente infeccioso vai, portanto, circular mais quanto maior for o número de pessoas não vacinadas, e quanto mais circula, mais causa doença, morte, e se muta, podendo cada vez mais escapar da proteção vacinal.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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