Coluna
Januária Cristina Alves
Jovens e violência: como educar para a convivência pacífica?
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Na manhã de terça-feira (28), um dia depois do ato de extrema violência ocorrido em São Paulo na Escola Estadual Thomazia Montoro, no qual um garoto de 13 anos matou uma professora, feriu quatro pessoas e teve de ser contido por uma outra educadora para não causar estragos maiores, ouvi um desabafo de uma professora de educação infantil que me chamou a atenção por definir bem a sensação que tomou conta de todos nós: “Parece que estamos vivendo numa partida de videogame que não tem fim! Quando vai haver o ‘game over’ desse jogo onde só sobraram mortos e feridos?” Creio que nenhum de nós tem uma resposta pronta para tal pergunta porque há muito a considerar e mais ainda a rever e refletir.
Na semana passada, eu e as jornalistas Laura Mattos, da Folha de S.Paulo e Eliane Leme, da Soupods, empresa especializada em podcasts, juntamente com o Instituto Vero — formado por pesquisadores e comunicadores digitais para combater a desinformação —, lançamos o podcast “Curti, E Daí?”, cujo propósito é promover reflexões sobre o uso das mídias sociais por adolescentes. Conversamos com jovens entre 14 e 18 anos de diversas escolas públicas e privadas brasileiras para ouvi-los sobre o que pensam da sua relação com o universo on e offline, e foi uma experiência marcante para todos nós. Primeiro porque demos a eles, literalmente, o lugar de fala. Ou seja, eles puderam expressar sem filtros como se sentem em relação a toda essa complexidade. Depois porque percebemos que o simples fato de se sentirem ouvidos, respeitados e incluídos nessa discussão fez com que se dispusessem a repensar questões de uma maneira que nunca haviam feito antes. No dia do atentado lembramos o quão importante foi levar para o “chão da escola” assuntos como esses que abordamos nos cinco primeiros episódios do podcast, que estão no centro do cotidiano de todos nós e que impactam a vida desses jovens de maneira indelével.
Como lançar um olhar mais atento e afetivo para jovens que estão crescendo num universo inundado de informações falsas, sem referências seguras?
Como educar para a tolerância? Como lidar com o bullying, o ciberbullying, o discurso de ódio, as teorias conspiratórias, os vídeos que ensinam automutilação, os sites que vendem armas para quem quiser comprar? Como lançar um olhar mais atento e afetivo para os jovens que estão crescendo num universo inundado de informações falsas, sem referências seguras – antes simbolizadas na figura do professor, que hoje vive o desafio diário de ser checado constantemente pelas ferramentas de busca e pelos influencers que multiplicam certezas ao invés de gerar perguntas que promovam o conhecimento – e com falta de diálogo, consenso ou mesmo o dissenso respeitoso e construtivo? A escola segue em busca dessas respostas, mas tem que ser amparada e apoiada por toda a sociedade.
Em muitas das análises que circularam nas mídias para dar conta de explicar o assassinato, as redes sociais aparecem como vilãs, como as grandes responsáveis pelo comportamento violento dos jovens.Porém, sabemos que não se trata de um jogo de videogame – apesar de parecer, como disse a professora de educação infantil que citei no início desse texto – mas de um fenômeno social complexo e multifacetado que a internet cuidou de intensificar e dar velocidade. Vivemos uma vida dividida, cindida pela passagem rápida e superficial entre o on e offline, onde temos personalidades distintas em cada um desses lugares. E isso está cindindo também os laços de convivência e empatia que fazem com que sejamos mais amáveis, cordiais e tolerantes com as idiossincrasias que são parte do ser humano.
Como disse Ronaldo Lemos, colunista da Folha de S.Paulo explicando o que chamou de “intimidade artificial”: “as mídias sociais e nosso celular funcionam como anestesia seletiva para as relações humanas. Queremos as partes boas do convívio, que são do nosso interesse, mas evitamos ao máximo atritos, conversas desconfortáveis, tédio etc. Sempre que algo desconfortável começa a se materializar, partimos para o mundo confortável e controlado do celular, que nos distrai do que é verdadeiramente humano”. E, como sabemos, de tanto evitar um problema muitas vezes fazemos com que ele se avolume de uma forma que será impossível não ter de lidar com ele à força, tal como nos encontramos agora.
A experiência de ouvir os jovens para o podcast me fez pensar no descaso e descrédito que os jovens do nosso tempo têm experimentado. Nós, adultos, também estamos com os nossos narizes colados aos gadgets, e apesar disso, os rotulamos e julgamos do alto de uma superioridade que não cabe mais num mundo cheio de incertezas. Precisamos refletir sobre o nosso exemplo, sobre o que não sabemos e como tal constatação pode nos ensinar a, junto com os jovens, buscar outras maneiras de (com)viver.
Jesús Martín-Barbero, pensador hispano-colombiano pioneiro nos estudos sobre a relação dos jovens com a comunicação, em seu livro recém-lançado “Jovens entre o palimpsesto e o hipertexto” (Ed. Sesc SP), coloca uma reflexão que deve ser central para pensarmos a responsabilidade de todos nós diante do que estamos vivenciando: não são os jovens que estão perdendo os valores mais importantes para a sociedade. Eles tão somente estão tornando “visível o que, há muito tempo, vem se deteriorando na família, na escola, na política”. Segundo ele, “identificar a juventude com a ausência de valores é mais um gesto hipócrita desta sociedade incapaz de perguntar: com o que esperamos que possa sonhar uma juventude cotidianamente alimentada (…) com o anseio do lucro fácil, com o dinheiro e o conforto como valores supremos, com a confusão do inteligente com o esperto (…) com a corrupção como estratégia de ascensão tanto na classe política como na empresarial? (…) Que experiências de solidariedade ou generosidade oferece hoje aos jovens uma sociedade desconfiada, receosa, profundamente injusta e, no entanto, estagnada e conformista?”. São perguntas que precisam ser encaminhadas nas famílias e na escola com a urgência e a seriedade que o momento requer.
Há uma mobilização do Estado e da sociedade em busca da regulação das plataformas de internet, as escolas estão começando a implementar em seus currículos a educação antirracista, a educação financeira, a socioemocional e esperamos que logoincorporem a educação midiática às suas práticas pedagógicas. Mas todos esses esforços se revelarão inúteis caso não façamos, cada um no seu pedaço, uma pergunta-chave que promova uma ação concreta no cotidiano para que o “game over” aconteça. Não vale desistir do jogo e desligar a tela, é preciso seguir questionando o que temos a ver com tudo isso.
Quando chegamos às escolas entrevistadas para o podcast para perguntar aos meninos e meninas que nos esperavam ansiosos para falar e se colocar, o que queria dizer, para eles, “Curti, e daí?”, recebemos de forma inconteste, respostas que deram conta de que quanto mais dialogarmos, discutirmos, debatermos e enfrentarmos as mazelas que se apresentam com clareza e honestidade, mais próximos estaremos de jogar esse jogo de maneira justa e sustentável. Mesmo que o “game over” ainda esteja longe de acontecer.
Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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