Coluna

Luciana Brito

O caso dos racistas: reflexões para não desumanizar Vini Jr

30 de maio de 2023

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Muitas vezes a denúncia pode levar ao fim da carreira do atleta, sem atingir o criminoso. Graças à luta do movimento negro brasileiro, sociedade avançou

A imprensa e o próprio jogador Vinícius Júnior já deram ampla cobertura ao caso de racismo mais recente sofrido pelo atleta no dia 21 de maio. Para preservar a minha própria saúde mental, e a das pessoas que me leem, não vou repetir tudo aqui, é desnecessário, pois já sabemos. Assim como do próprio fato ocorrido, já sabemos de muitas coisas: de que a Espanha, assim como Portugal, não se envergonham do seu passado histórico de serem protagonistas no tráfico de africanos. Algumas pessoas podem até considerar inútil trazer evento histórico tão distante para este texto, mas este passado não passou: é justamente por causa da escravidão moderna, racializada, que pessoas negras, como Vinícius Júnior, até hoje são chamadas de símios mundo afora, seja na Europa ou no próprio país onde Vinícius nasceu, pois cá para nós sabemos que o que aconteceu em Madri também acontece aqui.

Eu gostaria de destacar três aspectos nesse episódio de racismo no esporte, e associá-lo a outros.

1. As próprias pessoas negras são as principais agentes de reação ao racismo, e quando o fazem, é porque não aguentam mais. Pessoas que nunca viveram racismo, ou pessoas negras de última hora, jamais entenderão os longos segundos que levam para entender que a ofensa contra você tem cunho racista porque a gente busca, inutilmente, outro sentido para a agressão. É difícil de acreditar. Por isso, que a maioria de nós senta e chora, como o próprio Vinícius chorou ainda no gramado: ele foi agredido com palavras racistas mais de uma vez, tomou a iniciativa ele mesmo de denunciar os racistas, retrucou, tomou um mata-leão, foi expulso do campo. Antes de ser expulso, quando a confusão já estava instalada, Vinícius ainda foi orientado pelo árbitro a “seguir o protocolo” e voltar para o gramado, e continuar jogando. Ou seja, Vinícius foi desumanizado pela segunda vez no mesmo instante, pois ele deveria voltar e continuar entretendo a plateia que o chamava de macaco, vencendo o medo, a vergonha, a tristeza, o trauma. Vinícius, assim como nos outros jogos, estava sozinho numa arena de racistas que gritavam sua bestialização. Eu digo isso, porque escutei a semana inteira falas de jornalistas celebrando a reação de Vinícius, sua coragem, sua bravura. Eu só imagino a raiva, o medo e o quanto ele tremia por dentro, sua vontade de sair correndo dali. Vale lembrar que o atleta tem somente 22 anos.

2. Outro aspecto importante de se pensar é sobre o preço que se paga por denunciar o racismo no esporte, pois todo ato de coragem tem um dia seguinte, e a mesma imprensa que, a depender do momento a celebra, pode abondonar a/o atleta no ostracismo logo depois. Isso é diferente, por exemplo, do narcisismo e egoísmo de outros atletas, sobretudo negros, que silenciam ou mandam mensagens cifradas e fofas em apoio ao seus colegas, quando assim o fazem. Ao corajoso, ou corajosa, que em geral fica sozinho, o custo da denúncia é alto: sabotagem, ostracismo, fim da carreira. Lembremos do goleiro Aranha, que durante uma partida em Porto Alegre em 2014 foi também chamado de macaco pela torcida. O Brasil mudou muito quase 10 anos depois deste episódio. Naquela época, havia quem dissesse abertamente na imprensa que Aranha estava exagerando e era encrenqueiro. Programas de televisão exibiam entrevistas da única racista ouvida pela polícia nas quais ela chorava e pedia perdão, dizia estar arrependida do que fez. Aranha, por sua vez, era o negro raivoso. Foi colocado em diversas situações nas quais era pressionado a responder se iria ou não “perdoar” sua algoz, que aguardava seu perdão aos prantos. Em agosto de 2020, Mário Lúcio Duarte Costa (Aranha) declarou: “paguei com minha carreira” .

Também pagou com a carreira Angelo Assunção , ginasta, medalhista de ouro, que em 2015 denunciou o colega de equipe Arthur Nory por ofensas racistas que ocorriam cotidianamente. Desde que foi dispensado do Esporte Clube Pinheiros em 2019, o medalhista olímpico não tem contrato e nem lugar para treinar.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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