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Agenda 227

Eleições para conselheiros tutelares: por que participar?

18 de julho de 2023

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A votação para a escolha dos agentes é uma rara janela de oportunidade para que a sociedade se aproxime desses órgãos e entenda a sua importância e desafios

Instituídos pelo artigo 131 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), os conselhos tutelares terão sua composição renovada em 2023, em um processo de eleição unificada que acontecerá simultaneamente em todos os municípios brasileiros no dia 1º de outubro. O momento representa uma rara janela de oportunidade para que a sociedade se aproxime dos conselhos, entenda sua importância, conheça os desafios a serem enfrentados e colabore ativamente com o esforço por garantir uma vida digna para todas as crianças e os adolescentes brasileiros, participando da escolha dos agentes que assumem a linha de frente desse trabalho.

Não por acaso, há quem considere os conselhos tutelares uma espécie de Procon da área da infância e adolescência. Cabe a eles receber as demandas das comunidades onde atuam, orientando famílias, outros agentes públicos e a população em geral a respeito dos direitos previstos na legislação, além de acionar o poder público em casos de omissão ou violação para que se faça cumprir esses direitos. Casos de abandono, abuso e violência sexual, trabalho infantil, necessidade de encaminhamento a programas sociais como o Bolsa Família são alguns entre inúmeros exemplos que passam pelo conselho tutelar.

Para exercer adequadamente suas funções, o conselho tutelar possui o status de órgão público autônomo, não estando diretamente subordinado aos poderes Executivo e Legislativo municipais, ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público – isso apesar de, operacionalmente, se encontrar vinculado à estrutura da administração municipal.

Diante da centralidade do órgão na garantia de direitos, não se pode perder a oportunidade de contar com ampla participação popular na escolha de conselheiras e conselheiros. Assim, é necessário que todas as prefeituras, a partir de articulação do governo federal, fortaleçam o chamamento público para o processo eleitoral. O voto nesta data é facultativo, porém essencial para o presente e o futuro do Brasil. Trata-se de atender a uma responsabilidade cívica, estabelecida pelo artigo 227 da Constituição Federal, quando coloca os direitos das crianças e adolescentes como prioridade absoluta não apenas para o Estado, mas também para a família e para toda a sociedade.

O voto consciente e bem-informado para a escolha de conselheiras e conselheiros tutelares é peça central no contexto da arquitetura cidadã

A mobilização em torno do tema também exige urgência e maior transparência. Embora a presença dos conselhos tutelares esteja disseminada Brasil afora, na verdade temos muito pouca informação sobre suas condições de funcionamento e os obstáculos para que cumpra seu papel. O próprio Estado brasileiro falha em produzir informações sistematizadas sobre esse universo. Há anos se espera um diagnóstico detalhado sobre quantos conselhos estão atuantes no país, quais territórios seguem desassistidos, qual o perfil das conselheiras e conselheiros e quais são as principais limitações registradas em termos de capacitação técnica e infraestrutura, entre outras tantas questões. Sem um retrato atual e preciso dos conselhos tutelares, como será possível investir em seu aprimoramento?

Profissionais que acompanham de perto o trabalho realizado junto aos territórios sabem – mesmo sem ter acesso a dados pormenorizados – que, historicamente, a grande maioria dos conselhos enfrenta dificuldades para cumprir sua missão. Porta de entrada para o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, ao longo do tempo muitos conselhos tutelares foram se distanciando do vínculo comunitário e das reais demandas locais, abrindo caminho para o aparelhamento por agendas de partidos políticos ou grupos religiosos que não necessariamente pautam sua atuação pelos princípios constitucionais e previstos no ECA. Nos últimos anos, esse quadro foi ainda mais agravado pela intencional desconstrução das políticas federais de proteção social.

Mudar essa realidade não será fácil, mas começa pelo voto da população. Nas próximas semanas, cada cidadã ou cidadão deve procurar informações a respeito das candidaturas ao conselho tutelar presentes na região onde vive, buscando saber se suas propostas se encontram realmente motivadas pelo interesse público e em alinhamento com as diretrizes previstas na nossa avançada legislação para proteger e promover direitos de crianças e adolescentes.

Além do maior envolvimento da população para a escolha de conselheiros e conselheiras comprometidos com a Constituição e o ECA, outro desafio está colocado para o bom funcionamento desses órgãos: a necessidade de se investir na qualificação das candidaturas. Nesse sentido, várias cidades, como Belo Horizonte e Salvador, já aplicam prova que requer conhecimento prévio dos conceitos e legislações que regem a pauta dos direitos de crianças e adolescentes, assim como de noções básicas a respeito do funcionamento do Sistema de Garantia de Direitos. Candidaturas bem-intencionadas são sempre bem-vindas, mas não bastam. É preciso ir além.

Uma vez escolhidos os integrantes dos conselhos tutelares, cabe ao Estado brasileiro criar programas de qualificação permanente e obrigatória para essas conselheiras e conselheiros, assegurando que se consolide, entre esses profissionais, o alinhamento conceitual previsto pela legislação.

Um exemplo prático do quão prejudicial pode ser esta ausência de conhecimento integrado está na grande incidência de casos de institucionalização de crianças e adolescentes em acolhimento institucional ou familiar. A norma vigente é de que meninas e meninos sejam retirados do convívio familiar apenas em casos de extrema necessidade. Em 2004, pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas) já apontava que o principal motivo de abrigamento era a pobreza da família , erroneamente tomada como negligência voluntária. Mesmo passadas quase duas décadas da pesquisa, a pobreza ainda tem sido tomada como motivo de retiradas de crianças e adolescentes de suas famílias, o que aponta a ausência de políticas públicas efetivas de apoio às mesmas. Nesses casos, ao promover o acolhimento, termina-se por punir cidadãs e cidadãos pela ausência da ação estatal.

Outra situação que evidencia a necessidade de fortalecer a preparação das conselheiras e conselheiros é que hoje o Sipia (Sistema de Informação para a Infância e Adolescência), responsável pela sistematização de dados coletados nos processos de atendimento à população, é alimentado por apenas 20% dos conselhos tutelares. Este, inclusive, é tema de uma das propostas do movimento Agenda 227 apresentadas para as candidaturas à Presidência da República em 2022. Uma das medidas voltadas a fortalecer o trabalho dos conselhos tutelares é exatamente tornar obrigatório o uso do Sipia, além de atualizar e aperfeiçoar o sistema de coleta de dados. Afinal, políticas públicas baseadas em evidências e com lastro na realidade local tendem a ser mais efetivas e assertivas.

Não faltam razões, portanto, para considerarmos o 1º de outubro uma data de relevância estratégica para seguirmos construindo uma país que cuida do presente e do futuro de todas as crianças e adolescentes. Certamente cabe ao Estado a responsabilidade primordial por estruturar e implementar o Sistema de Garantia de Direitos. Mas o modelo de democracia, que sustenta tanto nossa Constituição como o próprio ECA, depende de efetiva e constante participação social. O voto consciente e bem-informado para a escolha de conselheiras e conselheiros tutelares é peça central no contexto dessa arquitetura cidadã.

Fernanda Flaviana de Souza Martins é assistente social, doutora em psicologia, professora da PUC Minas, diretora da Providens e secretária do Movimento Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária, que integra o movimento Agenda 227.

Flávio Debique é mestre em ética social e desenvolvimento humano, há 20 anos atua na promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil e em vários países da América Latina. Atualmente é gerente nacional de programas e advocacy da Plan International Brasil, que integra o movimento Agenda 227.

Agenda 227é um movimento apartidário da sociedade civil brasileira que tem como objetivo colocar crianças e adolescentes no centro da construção de um Brasil mais justo, próspero, inclusivo e sustentável para todos, a partir da concretização da prioridade absoluta garantida à população de 0 a 18 anos pelo artigo 227 da Constituição Federal.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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