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O Brasil assistiu nos últimos anos a uma multiplicação de livros sobre as características do racismo e seu lugar na nossa formação nacional. Autores e autoras das mais distintas abordagens e disciplinas vêm se dedicando ao tema de uma perspectiva estrutural ( Silvio Almeida ), filosófica ( Denise Ferreira da Silva e Sueli Carneiro ), histórica ( Ynaê Lopes dos Santos ), sociológica ( Jessé Souza ), apenas para citar alguns exemplos. O recém-lançado livro de Muniz Sodré (“O fascismo da cor”, ed. Vozes ) soma-se a essa literatura não apenas por afinidade temática, mas também pela análise crítica que faz dela. Para além da centralidade da figura de Sodré, uma das mais relevantes do debate intelectual recente, o livro já é em si uma contribuição incontornável, não apenas para os estudiosos da questão, mas também para qualquer leitora ou leitor interessado no processo de formação nacional.
Um dos principais méritos da obra é se contrapor à noção de “racismo estrutural”, notabilizada no debate público e acadêmico pelo livro homônimo do filósofo e atual ministro de Estado, Silvio Almeida. Apesar de potente na denúncia política do caráter geral e ubíquo do racismo brasileiro, o conceito apropriado por Almeida padeceria, segundo Sodré, de uma definição excessivamente vaga e erroneamente sistêmica. Em distintos momentos do livro, Sodré destaca o risco de uma teoria que imputa ao racismo uma capacidade infinita de autorreprodução por conta da força quase mística das “estruturas”. Logo, ao apontar para o seu caráter “normal” e “geral”, o argumento de Almeida terminaria por conferir ao racismo uma onipotência misteriosa e, sobretudo, perigosa. Se o racismo é (e sempre foi) estrutural, como lutar contra ele? Onde estão os fundamentos e origens dessas “estruturas”? A noção de racismo estrutural deixa essas e outras perguntas sem resposta.
Vale destacar que Sodré não condena toda aplicação do conceito: a expressão “racismo estrutural” seria perfeitamente adequada a realidades em que a segregação racial é explicitamente justificada nos arcabouços jurídicos de regulação política e econômica. O Brasil pré-abolição da escravidão seria, desse prisma, uma sociedade estruturalmente racista, assim como os Estados Unidos oficialmente segregado pelas leis Jim Crow ou a África do Sul durante o apartheid . Por isso mesmo, Sodré tenta demarcar o que distinguiria o racismo estrutural do Brasil escravocrata do tipo de racismo construído no pós-abolição e que permaneceria até hoje nos assombrando.
Mas se a crítica de Sodré à noção de racismo estrutural é pertinente, a parte mais propositiva do seu livro reitera alguns dos problemas que aponta. Seu esforço teórico reconhece que o racismo é estruturante das nossas relações sociais, mas contesta seu fundamento estrutural. Resta, então, explicar onde reside a força que mantém vivo o nosso racismo atual, o que é feito a partir de categorias ambíguas como “forma social racista”, “racismo paraestrutural”, ou ainda “efeito permanente da antiga estrutura escravista”. Esses conceitos buscam indicar que o racismo atual é 1) mais uma herança do passado do que uma expressão orgânica da nossa modernidade; 2) mais uma sensibilidade sentimental do que um sistema racional; e 3) mais um conjunto de práticas culturais historicamente assistemáticas e mambembes, próprias do nosso “patrimonialismo”, do que fruto de um sistema funcional.
É muito controverso enxergar o racismo como uma sobrevivência escravocrata e anacrônica. Nos termos de Sodré, o racismo seria “uma movimentação sensível, humanamente negativa ou retrópica [que] ressoa hoje em representações sociais (ideias, imagens, discursos, atitudes) anacrônicas, mas nada que se identifique como um sistema coerente”. Essa interpretação não é de todo nova, tendo sido muito forte entre os anos 1940 e 1960. Ela via o racismo no Brasil como uma herança maldita do passado que, apesar de não orgânica em relação ao capitalismo, permanecia assombrando nossa incompleta modernização. Tal interpretação, no entanto, peca ao tomar o racismo como um artefato próprio do período escravocrata que não teria um status orgânico com a modernidade capitalista pós-escravocrata. Isso ignora a existência de ideologias e práticas racistas que não precisam o tempo todo remontar ao passado para se justificar. Logo, se a noção de racismo estrutural de fato pressupõe aquilo que deseja explicar – a saber, os mecanismos de reprodução do racismo – a noção de racismo “para-estrutural” simplesmente dilui esses mecanismos em um caldo social disforme, tratando-o como um inconveniente anacronismo sem razão de existir (mas que existe).
É preciso manter a distinção entre estrutura, ideologia e práticas racistas para entender cada um dos lugares sociais onde o racismo se alojou historicamente
A segunda insuficiência é supor que estruturas sociais só existem quando formalizadas em aparatos jurídicos explícitos. Se o conceito de estrutura de Silvio Almeida é amplo demais, a noção de estrutura mobilizada por Sodré é demasiadamente exígua. Mais do que isso, Sodré não consegue explicar como o racismo brasileiro seria “estruturante” de nossas relações sociais, mas não “estrutural”. Em suma, não fica evidente de onde esse “novo” racismo extrairia seu poder. É verdade que dificilmente poderíamos imputar ao racismo brasileiro uma lógica clara e sistemática, ponto acertadamente destacado por Sodré. Mas até aí, isso vale para qualquer forma de racismo ou mesmo de ideologia. O fascismo, por exemplo, “não tem lógica” se contraposto à realidade, o que não o impede de possuir “lógicas” internas formalizáveis pelas teorias sobre ele. Analogamente, se raça é uma construção social arbitrária, o racismo sempre será igualmente ilógico da perspectiva de sua coerência com a realidade. Isso não nos impede, porém, de atribuirmos a ele regularidades e lógicas internas de funcionamento. Sabemos, por exemplo, que o racismo brasileiro se baseia muito mais no fenótipo do que na origem, como nos ensinou Oracy Nogueira, e que ele opera muito mais de modo velado que explícito, por exemplo. Nesse aspecto, o racismo funciona como quase qualquer ideologia, que embora seja irracional como descrição de uma realidade, é passível de ser racionalizável por diversos esforços de teorização sociológica.
Ligado a isso, a terceira fonte de problemas do livro vem da ilação segundo a qual os sistemas sociais no Brasil “não funcionariam” e, por isso, o fundamento do nosso racismo teria de ser assistemático. Recorrendo a uma frase dita pelo ministro do Supremo Luís Roberto Barroso, Sodré argumenta que o nosso racismo não poderia ser estrutural porque “no Brasil, a estrutura legal foi montada para o sistema não funcionar”. Em síntese, nosso racismo seria “uma verdadeira forma social autonomizada como herança autoritária de práticas patrimoniais das classes dirigentes, uma a mais no rol do clientelismo colonial e imperial, a que aderiu inercialmente a burguesia industrial nativa”. Além de dar azo a uma interpretação autossubalternizante do Brasil, que Guerreiro Ramos chamaria de “sociologia enlatada”, Sodré tenta escapar da vagueza própria da noção de estrutura recorrendo a uma categoria talvez ainda mais antinômica: patrimonialismo. Notabilizada na obra “ Os donos do poder”, de Raymundo Faoro , essa categoria faz referência à insistência de nossas elites em se apropriar dos bens públicos como se fossem privados, reproduzindo práticas coloniais culturalmente herdadas de Portugal. Mas nem Faoro nem Sodré explicam o que faz esse patrimonialismo atávico se reproduzir. Logo, o fundamento da nossa “forma social racista” é tão abstrato e vago quanto a noção de estrutura antes criticada.
O racismo de fato esteve na base do sistema escravista, mas não estava restrito a ele. Como mostra a recente obra “ Racismos ”, de Francisco Bethencourt , é possível identificar práticas discriminatórias, conectáveis ao que entendemos hoje como racismo, muito antes da consagração do sistema escravocrata colonial de origem portuguesa. Do mesmo modo, nem toda escravidão da história se baseou em fundamentos racistas tal qual entendidos hoje, a exemplo dos modelos de escravidão imperantes na antiguidade. No Brasil, essa vinculação aparentemente lógica entre racismo e escravidão é contestada no mínimo desde os trabalhos de Carlos Hasenbalg e Lélia Gonzalez . Ambos mostraram que o racismo não é uma força inercial do passado, inorgânico em relação ao capitalismo, mas sim uma força social relativamente autônoma que pode se nutrir de diferentes arranjos sociais, sejam eles antigos ou modernos.
Como sugere Ynaê Lopes dos Santos, a história do Brasil é indissociável da história do racismo no mundo. O que proponho aqui é uma abordagem multidimensional do racismo capaz de entender que os vínculos entre essas duas histórias foram se reinventando no tempo a partir de diferentes acoplamentos entre dimensões estruturais, ideológicas e atitudinais. Em síntese, apesar de a escravidão ser uma mazela que nunca deve ser esquecida, o racismo contemporâneo tem fontes modernas. Ele não precisa se referir, a todo tempo, a um passado longínquo. O racismo no Brasil não se reproduziu no tempo por uma inércia do passado, nem por ser alimentado por outro artefato atávico da nossa cultura supostamente patrimonialista, mas justamente o oposto: é na sua capacidade de reinvenção – que sempre articula e rearticula ideologias, estruturas e práticas – que explica sua maléfica longevidade. Por isso tudo, mais do que buscar um conceito síntese que explique todo nosso racismo como “estrutural” (Almeida) ou como “forma social” (Sodré), é preciso manter, ao menos analiticamente, a distinção entre estrutura, ideologia e práticas racistas para entender cada um dos lugares sociais onde o racismo se alojou historicamente. Sem uma compreensão tridimensional do racismo , não entenderemos seus mecanismos de funcionamento e dificilmente conseguiremos articular uma luta eficaz contra suas consequências.
Luiz Augusto Camposé professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA. É autor e coautor de vários artigos e livros sobre a relação entre democracia e as desigualdades raciais e de gênero, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”.
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