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Olavo Amaral

Quando a ciência vira anúncio

21 de março de 2023

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Divulgadores científicos precisando se monetizar encontram uma das indústrias mais poderosas do mundo, e o casamento entre ambos não interessa a ninguém

Em janeiro de 2023, o biólogo Átila Iamarino , rosto mais conhecido da divulgação científica brasileira por sua atuação na pandemia de covid-19, lançou uma série de vídeos sobre as vacinas contra a doença. Neles, ele explica o processo de testagem e aprovação dos imunizantes, discute sua eficácia em prevenir hospitalizações e mortes e compara-a com a da imunidade conferida pela infecção.

Até aí, nada de novo: como inúmeros divulgadores brasileiros, Átila se notabilizou nos últimos anos pelo ativismo em prol da vacinação. Esses vídeos, porém, continham um detalhe inusitado no canto superior esquerdo da tela: o logo da Pfizer, maior fabricante de vacinas de covid-19 no mundo, já que se tratava de uma “parceira paga” entre os perfis do divulgador e da farmacêutica no Instagram.

Não foi um fato isolado. O SciCast , tradicional podcast de ciência brasileiro com quase 10 anos de existência, fez uma série de três episódios sobre vacinas em parceria com o laboratório, discutindo seus mecanismos, as campanhas de imunização e a desinformação sobre o tema. Em um arranjo mais inusitado, o Olá, Ciência! , canal do YouTube com mais de 1,5 milhão de seguidores, fez vídeos sobre resistência a antibióticos patrocinados pela Pfizer em 2021.

O envolvimento da indústria farmacêutica em atividades ditas educacionais – no papel, ao menos – não é um fenômeno recente. A Big Pharma financia a educação médica há décadas, através de congressos , almoços e jantares com palestras , patrocínio de universidades , visitas de representantes de laboratórios e material educativo gratuito. Também investe no segmento dos pacientes, com campanhas de informação sobre doenças e tratamentos – e com isso consegue desviar das leis que proíbem a publicidade direta de medicamentos.

Sua atuação no meio da divulgação científica, porém, parece ser recente – assim como a estruturação da atividade no Brasil. Depois de muito tempo sendo carregada como projeto paralelo por cientistas mais envolvidos com outras coisas, a divulgação de ciência vem sendo cada vez mais assumida por profissionais que fazem dela uma carreira, através de blogs, canais do YouTube e podcasts monetizados de diferentes formas. A pandemia de covid-19 catalisou esse cenário, catapultando alguns destes divulgadores para o centro do debate público.

Precisamos de investimento institucional em bons divulgadores científicos para que eles possam fazer seu trabalho sem se preocupar com as opiniões de redes sociais ou patrocinadores

A fama não mudou, porém, o panorama geral do mercado. A divulgação científica até atraiu a atenção de alguns financiadores – como o Instituto Serrapilheira , que aliás patrocina essa coluna – e do grande jornalismo, que promoveu nomes como Átila e Natália Pasternak a colunistas fixos. Ainda assim, o grosso dela permanece uma atividade feita com recursos próprios e monetizada pelas redes sociais – a não ser para quem possui uma posição acadêmica. Com isso, a entrada de patrocinadores no mercado parece ter sido aceita no meio sem grandes críticas: os divulgadores, afinal, precisam se sustentar.

Dito isso, há um oceano de diferença entre ser patrocinado por jogos de computador ou cursos online para falar de curiosidades científicas – como no caso do canal Nerdologia , projeto pelo qual Átila era conhecido antes da pandemia – e ser patrocinado pela Pfizer para falar de vacinas. Décadas de pesquisa sobre a influência da indústria farmacêutica mostram que médicos que recebem apoio de laboratório para ir a congressos prescrevem mais medicamentos , que pesquisas financiadas pela indústria têm resultados mais positivos e que palestras patrocinadas são formas efetivas de vender remédios . Achar que é possível se tornar parceiro da indústria sem se expor a esse tipo de viés é um pouco como acreditar em unicórnios, astrologia e essas coisas que os próprios divulgadores científicos nos ensinam que não existem.

O envolvimento da indústria farmacêutica na pesquisa clínica é tão extenso que em várias áreas é quase impossível remover sua influência sem jogar a maior parte da ciência publicada junto. Por conta disso, o que a área tenta fazer é ao menos deixar esse viés explícito. É geralmente esperado que, ao publicarem artigos ou darem palestras, pesquisadores declarem todos os seus financiamentos recebidos da indústria em anos recentes – ainda que isso nem sempre seja feito .

A prática, porém, ainda não ganhou pé na divulgação científica. Os divulgadores patrocinados pela Pfizer produzem bastante conteúdo sobre vacinas, a maior parte do qual não é diretamente patrocinado. Ao acessar esse material, porém, o espectador não fica sabendo que seus autores recebem recursos da indústria, a não ser que calhe de encontrar as tais parcerias pagas. Em casos como o Olá, Ciência!, o conteúdo patrocinado sequer diz respeito a vacinas – mas coincidentemente foi lançado no mesmo mês que um vídeo sobre a vacina da Pfizer que afirma que “ficou claro que ela é segura e com alta capacidade de proteção”.

Defensores das parcerias podem alegar que, se o conteúdo estiver correto, isso não é necessariamente um problema. O argumento é frágil – como qualquer um que tenha trabalhado em jornalismo sabe, focar em aspectos positivos e calar sobre os negativos é suficiente para produzir informação enviesada sem cometer nenhum erro factual. Nesse caso, porém, ele sequer pode ser usado.

No primeiro vídeo de Átila em parceria com a Pfizer, ele afirma que “quem se expôs à doença como forma de desenvolver imunidade contra ela tem três vezes mais chance de hospitalização e um risco de morte duas vezes maior do que quem pega a doença pela primeira vez.” A ideia é contraintuitiva, e parece vir de uma interpretação errada – mas circulada na mídia e nas redes sociais – de um artigo científico que não diz exatamente isso – como aliás alertam seus próprios autores em sua versão revisada . Para piorar, ela é diametricamente oposta aos resultados de revisões sistemáticas da literatura , que concluem que uma infecção anterior pelo SARS-CoV2 diminui em quase 90% a chance de doença severa – comparável à proteção induzida pela vacinação , ainda que obviamente com mais risco .

Curiosamente, a campanha da Pfizer se chama “fake news não”, mas espalha uma delas. Ainda assim, nenhuma agência de checagem de fatos ou veículo de imprensa parece ter se dado o trabalho de apontá-la, apesar de terem feito centenas de checagens sobre cloroquina, ivermectina ou riscos de vacinas . O que parece dar certa razão ao discurso da direita política de que elas só questionam um lado da narrativa . Mais do que isso, o patrocínio da indústria cai como uma luva para reforçar visões de mundo que veem o consenso em torno da vacinação como uma conspiração de um status quo corrompido pela Big Pharma – e acaba respingando na credibilidade da divulgação científica como um todo.

E pouco importa que a informação errada não se refira diretamente às vacinas. Negar a proteção acumulada pela infecção prévia, e com isso exagerar o risco da infecção por covid-19 para a maioria da população em 2023, é uma forma eficiente de vender vacinas. O que parece ser apenas mais um caso do fenômeno conhecido por “ disease mongering – a “conscientização” sobre os riscos da doença como forma de ampliar o mercado de seu tratamento.

Em defesa de Átila, ele já tinha divulgado a mesma interpretação equivocada em suas redes sociais no ano passado – o que sugere que ela não tenha sido fruto da influência da Pfizer. Mas isso não implica que o patrocínio não tem impacto – se a indústria puder usar seu poder bilionário para promover a informação enviesada que lhe interessa, isso já é um problema.

O fato do engano ser anterior à parceria traz ainda uma outra reflexão, quiçá mais interessante. Mesmo sem patrocínio, Átila e outros divulgadores que fizeram fama durante a pandemia já possuem seus conflitos de interesse – não com os fabricantes da vacina, mas com a covid-19 em si. Para alguém que passou anos alertando para seus riscos – geralmente com razão – pode ser difícil mudar de discurso, até porque isso significa perder relevância junto ao público – e ser desmonetizado na economia de atenção das redes. Isso pode criar um solo fértil para exagerar a gravidade atual da doença, e talvez ajude a explicar a direção do erro de interpretação.

A conclusão disso tudo talvez seja a de que a aposta na divulgação científica independente para informar a população sobre saúde – feita para preencher o vácuo institucional deixado pelo governo Bolsonaro na pandemia – pode não ser um modelo sustentável. A necessidade de monetização pode não ser um problema para a divulgação de outros tipos de ciência – um patrocinador, afinal, dificilmente afetará sua isenção para falar de dinossauros ou astronomia. Informação em saúde, porém, tem consequências diretas sobre as escolhas das pessoas – não por acaso, o slogan do Olá, Ciência! é “conhecimento e tecnologia para tomar decisões”. Isso a torna um campo minado de interesses, movidos pelo mercado bilionário da saúde, o que requer esforços para proteger a isenção de quem fala.

Nesse sentido, precisamos de investimento institucional em bons divulgadores para que eles possam fazer seu trabalho sem se preocupar com as opiniões de redes sociais ou patrocinadores. Assim como de mais transparência para explicitar conflitos de interesse, que inevitavelmente seguirão existindo. Passado o surto de obscurantismo no governo federal, é hora de trabalhar por um ecossistema de informação em saúde que não dependa de parcerias pagas ou anúncios no YouTube.

Aliás, fazendo minha própria declaração de conflito de interesse, é muito fácil criticar quem recebe patrocínio quando se tem um emprego estável – mas essa é exatamente a razão para que a estabilidade exista. Inclusive para quem trabalha no Ministério da Saúde – que, aliás, tem uma campanha de vacinação contra a covid-19 em curso. Pode não ser perfeita como fonte de informação, mas ainda parece uma aposta mais segura do que a publicidade da Pfizer.

Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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