Coluna

Olavo Amaral

Quebrando o oligopólio da publicação científica

21 de novembro de 2023

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Um mercado de atravessadores drena bilhões de dólares de cofres públicos todos os anos, e a culpa é toda da comunidade acadêmica

No início de novembro, um artigo na Quantitative Science Studies estimou, que entre 2015 e 2018, um oligopólio de apenas cinco editoras acadêmicas – Elsevier, Wiley, Springer-Nature, Taylor & Francis e Sage – faturou mais de US$ 1 bilhão ao redor do mundo cobrando taxas de publicação de artigos científicos. O trabalho quase certamente subestima o valor atual, tanto porque os preços aumentaram como porque o mercado cresce em ritmo acelerado: uma estimativa do ano passado coloca o total de gastos com taxas de publicação científica no mundo em torno de US$ 2 bilhões.

A ideia de pagar para publicar ciência é um fenômeno recente, implantado como forma de financiar a divulgação de conteúdo científico em acesso aberto. Ainda que a migração do sistema de publicação para o ambiente online tenha tornado a abertura tecnicamente viável, ela foi inicialmente impedida pelo fato de as revistas científicas terem caído nas mãos de grandes editoras comerciais , que mantiveram um modelo baseado em assinaturas, cobrando taxas exorbitantes de indivíduos, instituições ou países pelo acesso a conteúdo protegido por paywalls.

O sistema causou incômodo na comunidade acadêmica, e, desde o início dos anos 2000 , existe pressão crescente para que resultados de pesquisa – que afinal costumam ser financiados por dinheiro público – sejam universalmente acessíveis. A ideia, porém, ganhou tração lentamente: ainda que editoras de acesso aberto, como a Public Library of Science , tenham surgido há duas décadas, o prestígio acumulado das revistas tradicionais manteve o modelo por assinatura dominante – e ainda hoje ele representa a maior parte do faturamento anual de cerca de US$ 10 bilhões da indústria de periódicos científicos.

Em meio à polêmica sobre quem deve pagar a conta do acesso aberto, uma questão óbvia costuma se perder: por que os custos da publicação científica são tão altos?

O ritmo da transição, porém, acelerou nos últimos anos, em particular a partir do movimento de um grupo de financiadores de ciência europeus, o cOAlition S , de exigir a publicação de artigos em revistas de acesso totalmente aberto, através do chamado Plan S . O processo, porém, vem cobrando um preço alto: como o plano não contempla a dita “ via verde ” do acesso aberto, em que os autores disponibilizam o artigo em um repositório mas o copyright é retido pela editora, ele tem forçado autores ao redor do mundo a cobrirem as taxas de publicação cobradas por revistas científicas que trabalham no modelo abertopara compensar o lucro perdido com as assinaturas.

Obviamente, porém, o custo não dói igualmente nos bolsos de todo mundo. O custo médio da publicação de um artigo – estimado em cerca de US$ 1.626 em 2021 pode não significar tanto na Suíça, mas equivale a quase quatro meses de bolsa de mestrado no Brasil. Não por acaso, as principais críticas ao Plan S têm vindo do mundo em desenvolvimento, mesmo que a iniciativa se origine na Europa – já que sua implantação como inicialmente pensada forçaria a migração da maior parte dos periódicos científicos para um modelo totalmente aberto a partir de 2025 .

Pesquisadores brasileiros vêm sendo particularmente vocais nessas críticas , argumentando que mesmo as propostas de preços diferenciais para países com diferentes níveis de poder de compra per capita prejudicariam o Brasil , que acabaria colocado na mesma faixa de países como Espanha, Itália ou Coreia do Sul. Isso levaria o país a pagar até mais do que hoje em dia, de forma a financiar descontos para países de renda mais baixa.

As críticas são justas, mas é curioso que só apareçam agora: o Brasil gasta rios de dinheiro público há mais de duas décadas assinando revistas científicas através do Portal de Periódicos da CAPES, cujo orçamento em 2022 foi de R$ 496 milhões – muito mais do que se estima que o país desembolsa hoje com taxas de publicação. Mesmo assim, o sistema – que ainda possui o revés gigantesco de só disponibilizar os artigos para quem é filiado a uma pós-graduação – sempre foi amplamente apoiado por pesquisadores brasileiros, que parecem só ter acordado para o tamanho da despesa quando ela foi direcionada a eles, ao invés de descontada na fonte.

Em meio à polêmica sobre quem deve pagar a conta, no entanto, uma questão óbvia costuma se perder: por que exatamente as taxas de publicação são tão caras? A pesquisa em si, afinal, já está pronta quando um artigo é submetido. Os revisores (e por vezes também os editores ) que avaliam os artigos quase sempre trabalham de graça – com seu tempo financiado com dinheiro público . E espaço online, sejamos honestos, não parece ser tão caro assim em 2023. É difícil entender, assim, como a conta para colocar no ar um artigo de meia dúzia de páginas atinge a casa dos milhares de dólares.

Parte da explicação, naturalmente, é mera ganância: as grandes editoras comerciais operam com margens de lucro entre 30% e 40%. Mas mesmo organizações sem fins lucrativos como o grupo PLoS e a eLife apresentam custos altos por artigo – ainda que análises de custo estimem que o sistema poderia ser manejado com taxas bem mais baixas . A resposta parece ser um misto de ineficiência e redundância : cada editora mantém sua própria infraestrutura de submissão e pessoal, além de gastar em marketing e engajamento com a comunidade, o que acaba gerando um custo muito maior do que os que são fundamentais, como hospedagem online, indexação e geração de metadados.

Nada, porém, é mais redundante do que a ideia central que move o sistema: o processo de revisão por pares pré-publicação por parte da revista para determinar se um artigo deve ser publicado. Na prática, os estratosféricos US$ 11.690 cobrados pela Nature pela publicação de um artigo em acesso aberto refletem o fato de que a prestigiosa revista aceita apenas 8% das submissões recebidas – o que significa que os felizardos que passam pelo crivo acabam pagando também os custos editoriais da avaliação e rejeição dos outros 92%.

O irônico, porém, é que o processo não chega a funcionar como filtro da literatura científica, já que os artigos recusados quase invariavelmente serão submetidos a outra revista – a própria Nature frequentemente oferecerá enviá-los para avaliação por outros periódicos do mesmo grupo editorial, como a Nature Communications (US$ 6.490 por artigo ) ou a Scientific Reports (US$ 2.490 por artigo ). E como qualquer trabalho acabará por ser aceito emalgum lugar com insistência suficiente, pelo simples excesso de revistas, o trabalho de dezenas de rodadas de revisão e ressubmissão – geralmente realizadas a portas fechadas por revisores e autores – torna-se um simulacro fútil de controle de qualidade , servindo apenas para manter a escassez artificial que permite a Nature cobrar o que cobra pelo privilégio de publicar lá.

O cenário parece ainda mais distópico quando se considera que as evidências disponíveis mostram que artigos melhoram muito pouco na média , persistem com inúmeros erros e raramente mudam suas conclusões após a revisão por pares, o que sugere que o processo de edição e revisão tem algo do que o falecido antropólogo americano David Graeber chamaria de ” bullshit job “: uma ocupação burocrática intrincada cujo valor real para a humanidade é questionável . Talvez por conta disso, mais e mais cientistas (inclusive eu) vêm decidindo não gastar seu tempo acadêmico trabalhando de graça para grandes editoras – o que ironicamente aumenta o custo do sistema, ao tornar a tarefa de encontrar revisores cada vez mais difícil e, por consequência, dispendiosa.

Como alternativa, vale a pena considerar o custo do sistema se excluirmos esse passo – uma conta fácil de fazer por causa da existência de plataformas de preprints que, após verificações mínimas, publicam e realizam os passos básicos de indexação de um artigo, mas sem a etapa de revisão por pares. O arXiv , que atende a comunidade de ciências exatas há mais de 30 anos com financiamento distribuído entre instituições de pesquisa e filantropia , coloca esse custo em torno de US$ 12 por artigo . Estimativas do bioRxiv , repositório de preprints para as ciências da vida hoje sustentado pela Chan-Zuckerberg Initiative , são da mesma ordem . Alguns podem torcer o nariz ao ver a publicação científica sustentada por uma empresa cujo modelo de negócio é vender dados pessoais de seus usuários, mas o fato de que o custo cabe no bolso de uma única entidade filantrópica mostra que ele poderia ser facilmente assumido por agentes públicos.

Interessantemente, o Brasil tem a maior história de sucesso em fornecer infraestrutura pública para dar suporte à publicação científica a baixo custo. Desde 1997, o Scielo opera com financiamento de agências de fomento estaduais e nacionais para manter a maior parte dos periódicos do país (e de 16 outros ) gratuitos tanto para ler como para publicar. O trabalho editorial ainda é feito, a nível das revistas, por editores e revisores, que geralmente trabalham de forma voluntária, mas a plataforma providencia a infraestrutura básica para mantê-las no ar sem a necessidade de atravessadores comerciais. Afora isso, também lançou recentemente seu próprio repositório de preprints.

Não por acaso, a América Latina é citada como o exemplo a ser seguido na nova proposta do Coalition S , intitulada “Rumo à publicação responsável” . Lançada no final de outubro, a carta de princípios parece representar um redirecionamento na estratégia da organização , que passa a defender um modelo em que os autores são responsáveis pela disseminação de seus achados, com o controle de qualidade sendo realizado após a publicação, pela comunidade, abrindo a possibilidade de dividir a tarefa entre vários agentes , ao invés de atrelá-la a uma revista. O modelo, chamado por alguns de “ publicação-revisão-curadoria ”, vem sendo defendido por entusiastas de preprints há alguns anos, e vê-lo na agenda de uma coalizão de financiadores até então comprometida com o sistema tradicional é uma novidade bem-vinda.

Dito isso, a própria Coalition S coloca como um princípio básico para o sucesso do modelo que instituições e agências de fomento embarquem na ideia, não só providenciando infraestrutura para a publicação e revisão de artigos, mas também reformulando a avaliação científica, de forma a não julgar artigos com base no local de publicação: uma prática enraizada na comunidade científica que vem sendo alvo de inúmeras críticas de reforma há mais de uma década.

No Brasil, isso significa agências como a CAPES abandonarem o infame sistema Qualis , um ranking de periódicos que há 25 anos força pesquisadores brasileiros a boicotarem o melhor e mais sustentável sistema de publicação em acesso aberto do mundo em prol de alternativas mais caras, porém melhor ranqueadas. É curioso, aliás, que a mesma CAPES tenha sozinha o poder de recuperar 500 milhões de reais por ano cancelando assinaturas e outras centenas de milhões desperdiçadas em taxas de publicação acabando com o Qualis. Se você concorda que são boas causas – já que brasileiros baixam mais de sete milhões de artigos piratas por mês no Sci-Hub de qualquer forma –, o e-mail da presidência, da diretoria de avaliação e da ouvidoria são fáceis de achar aqui .

Se eles não ouvirem (como costuma acontecer), o pessoal do Coalition S tem uma consulta pública aberta sobre a sua última proposta. Não é necessário ser um cientista renomado para dar opinião: pelo contrário, precisamos de olhares frescos que possam chamar o sistema de estapafúrdio com todas as letras. Afinal, é apenas pelo apego de cientistas renomados ao sistema que lhes colocou em suas posições de poder que ele resiste à mudança. Como dizia Max Planck, a ciência avança um funeral por vez , e não haveria de ser diferente com a publicação científica.

Por fim, se você for um cientista – renomado ou não – e tiver algo a publicar, o mundo está cheio de opções para mudar o sistema. Meu grupo de pesquisa publicou seu último trabalho no Peer Community Journal – uma iniciativa gratuita e comunitária que opera em um modelo de revisão e curadoria pós-publicação . Se você quiser opinar sobre o artigo – ou sobre qualquer outro –, fazê-lo publicamente no bioRxiv , PubPeer ou em montes de outros fóruns abertos é um investimento mais produtivo do que fazer revisões fechadas para corporações que se apropriam do seu trabalho. As ferramentas para um mundo novo estão aí, e só precisamos de alguns funerais para que elas virem a norma.

Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros

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