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“Continue a nadar, continue a nadar, continue a nadar, nadar, nadar, pra achar a solução, nadar”, canta a peixinha Dory para o meu filho de quatro anos, me lembrando que a persistência é uma das virtudes mais marteladas no nosso imaginário coletivo desde a primeira infância. Do “keep calm and carry on” do governo britânico na 2ª Guerra aos filmes da Disney, nossa cultura é repleta de lemas que nos dizem para continuar fazendo o que estamos fazendo, mesmo na vigência de adversidades.
Talvez por conta disso, o veterano neurocientista Bryan William Jones, da Universidade de Utah, resolveu há uns anos postar, no então ainda Twitter, a lista de seus pedidos de financiamento desde 2012. Em uma lista de 63 itens (pela minha conta), havia 9 bolinhas verdes, indicando pedidos financiados, em meio a outras 54 bolinhas vermelhas representando as rejeições. No texto do tuíte, Jones deixa seu conselho para cientistas mais jovens: “continue submetendo.”
Depois de ser retuitada milhares de vezes, a postagem ganhou visibilidade novamente em janeiro no mundo científico, por razões que me escapam. Olhando o thread de comentários, os leitores do tuíte de Jones se dividem entre os que o consideram encorajador e os que o consideram “deprimente”. Mais do que isso, vários cientistas comentam que a taxa de sucesso de Jones é “típica” ou “parecida com a minha”. Não é uma surpresa: estatísticas dos NIH (National Institutes of Health) americanos mostram que o percentual de pedidos financiados tem girado em torno de 20% na última década. Os números do Brasil não são tão diferentes: na última Chamada Universal do CNPq, cerca de 28% das propostas foram financiadas.
Independentemente de achar a situação encorajadora ou deprimente, meu problema com o tuíte não é tanto com a estatística — que de fato parece refletir a realidade — quanto com o conselho de “seguir submetendo”. Escrever 63 pedidos de financiamento em 7 anos toma um tempo nada trivial de um pesquisador: um estudo australiano estimou que uma proposta de financiamento na área médica leva em média 38 dias para ser escrita; já entre astrônomos e psicólogos americanos, o número é de 171 horas. Um estudo estimou que, em 2005, 21% do tempo de pesquisa de docentes das ciências da vida e agrárias nos Estados Unidos era gasto preparando esse tipo de proposta. Dado que de lá pra cá a competição só tem aumentado, já que o número de cientistas ativos cresce mais rápido do que o dinheiro para os financiar, é bem provável que esse número seja maior em 2024.
Continuamos a nadar em cardume contra uma corrente cada vez mais forte de burocracia, que passamos a enxergar como uma força da natureza, ao invés de uma consequência de como escolhemos nos organizar
O tempo gasto no circo do financiamento não para por aí, já que outros pesquisadores têm que ler as propostas, avaliá-las e resolver quem vai ser contemplado — uma atividade que toma outros 10 dias de trabalho por ano do pesquisador médio, afora o tempo que os organizadores de chamada levam para encontrá-los, ler os pareceres e decidir os agraciados. Multiplique esses números pelo contingente total de pesquisadores, e o expediente para decidir quem é financiado toma milhões de horas de trabalho de cientistas todos os anos — o que significa milhões de horas a menos fazendo ciência de fato.
É evidente que a complexidade do sistema pode se justificar, caso esse ritual elaborado de fato selecione projetos capazes de gerar ciência de melhor qualidade e maior impacto social para receber recursos. Mas esse realmente é o caso?
Ainda que a maior parte dos cientistas considere a análise de projetos por pares como fundamental para que as melhores pesquisas sejam financiadas, as evidências sobre a eficácia do sistema são bastante frágeis. Em primeiro lugar, cientistas concordam muito pouco sobre o que vale a pena financiar: estudos sobre a correlação das notas de diferentes avaliadores em projetos dos NIH sugerem que ela é virtualmente nula, para julgamentos tanto quantitativos quanto qualitativos. Afora isso, a avaliação carrega vieses que podem privilegiar projetos mais conservadores, além de perpetuar desigualdades entre pesquisadores, ao financiar preferencialmente candidatos com currículos mais proeminentes e que já dispõem de financiamento, num fenômeno comumente designado de “efeito Mateus”, em homenagem à passagem bíblica que diz que “a quem tem, mais será dado”.
Por fim, tentativas de estabelecer relações entre avaliações de projetos e produção científica subsequente têm produzido resultados inconstantes, evidenciando correlações em alguns estudos mas não em outros. A análise, porém, é inevitavelmente enviesada pelo fato de que obter boas avaliações ajuda a conquistar recursos, os quais por sua vez ajudam a produzir ciência, mesmo que os projetos não sejam melhores a priori. Mais do que isso, mesmo nos estudos em que a correlação é positiva, ela parece ser fruto da baixa produtividade associada aos projetos com avaliações piores: dentro do subgrupo de projetos mais bem avaliados, a capacidade dos revisores distinguirem os que terão mais ou menos impacto acadêmico parece mínima.
Por conta disso, diversos cientistas renomados — notoriamente os microbiologistas americanos Ferric Fang e Arturo Casadevall — têm proposto que o sistema seja simplificado, estabelecendo o que eles chamam de uma “loteria modificada”: um sistema em que uma filtragem inicial dos processos meritórios é seguida de um sorteio para determinar quais serão financiados. Trabalhos de modelagem computacional sugerem que tal processo poderia aumentar o valor da ciência produzida ao diminuir o esforço gasto em preparar e avaliar projetos e liberar tempo dos pesquisadores, especialmente em cenários em que apenas uma minoria dos projetos pode ser financiada. Alguns sugerem inclusive que a ideia poderia melhorar a confiabilidade da ciência produzida, ao diminuir o estímulo a práticas questionáveis de pesquisa gerado pela hipercompetição. Tudo isso ainda é apenas teoria, mas tais loterias começaram a ser testadas por financiadores como o Conselho de Pesquisa em Saúde da Nova Zelândia, a Fundação Nacional de Ciência da Suíça e a Fundação Volkswagen, e em breve teremos uma noção melhor do seu impacto.
Soluções ainda mais simples — e radicais — para diminuir o tempo gasto indo atrás de dinheiro envolvem financiar pesquisadores independentemente de projetos, como faz a fundação MacArthur, ou simplesmente dividir o financiamento de pesquisa de forma igualitária entre pesquisadores ativos. É óbvio que cada uma dessas ideias traria consigo suas próprias limitações: a fragmentação de recursos decorrente de sua divisão homogênea, por exemplo, limitaria fortemente a realização de pesquisas complexas, e seria provavelmente inviável em países com orçamentos de ciência e tecnologia limitados como o Brasil.
Uma solução quiçá mais interessante é a ideia de que o problema central do sistema é justamente a fragmentação. A complexidade de distribuir recursos no meio acadêmico é em grande parte uma consequência do fato de que a unidade padrão a ser financiada na pesquisa acadêmica é o pesquisador, que por sua vez costuma chefiar um laboratório com um número restrito de estudantes. Isso faz com que editais recebam milhares de propostas individuais a serem avaliadas por comissões que dificilmente conhecem o trabalho dos envolvidos. A consequência são milhões de horas gastas escrevendo propostas, dificuldades enormes para decidir as melhores e um incentivo forte para o uso de métricas simplistas na avaliação de pessoas, dada a ausência de um contato mais próximo entre avaliador e avaliado.
Levando isso em conta, uma solução melhor talvez seja distribuir o financiamento de pesquisa a nível de instituições ou grandes grupos. Para além de simplificar o processo por diminuir o número de propostas, uma mudança da unidade fundamental de pesquisa para organizações maiores pode promover uma série de outras mudanças potencialmente interessantes. Elas incluem a capacidade de abordar questões científicas mais complexas, a especialização de funções dentro da organização e a possibilidade de que as pessoas sejam avaliadas internamente por quem conhece seu trabalho, sem a necessidade de métricas impessoais. Mais do que isso, se o financiamento for distribuído a nível institucional, isso tende a estimular a criação de equipes com perfis complementares que atuem em prol da instituição ao invés de si mesmos. Por fim, distribuir recursos entre organizações ao invés de pessoas tende a colocar a tarefa de ir atrás deles nas mãos de gestores, e abre espaço para que os cientistas façam ciência.
O modelo é defendido por gente como o ex-neurocientista James Phillips, um dos criadores da agência britânica de pesquisa avançada e inovação (ARIA), que vê, na grande instituição com financiamento estável e liberdade interna, o elemento comum entre algumas empreitadas revolucionárias na história da ciência e inovação, como o Bell Labs, o Laboratório de Biologia Molecular de Cambridge e o Centro de Pesquisa de Palo Alto da Xerox. Quando perguntado sobre as razões para o sucesso do laboratório de Cambridge, o lendário biólogo Sydney Brenner costumava destacar o fato de que comitês externos avaliavam o grupo como um todo, mas não seus indivíduos, o que permitia que alguns deles se dedicassem a problemas difíceis e arriscados sem serem penalizados.
É óbvio que ir em direção a esse modelo tem seus riscos, já que é provável que haja indivíduos com ideias de pequena escala que não caibam em grandes grupos, ou que não funcionem bem dentro deles. Mas criar mais financiamentos a nível institucional não significa que o modelo de financiar indivíduos tenha que ser abandonado. Pelo contrário, a pesquisa provavelmente se beneficia de uma diversidade de organizações com diferentes tamanhos e modos de operação, financiados de maneira distinta. Existem evidências de que grupos pequenos e grandes fazem contribuições distintas e complementares ao progresso científico, e não há razão para não termos ambos.
E, no fim das contas, talvez o sistema de financiamento acadêmico atual seja um problema menos por ser ruim e custoso do que por ser monótono. Ainda que editais tenham especificidades diferentes, agências de fomento públicas ao redor do mundo, incluindo o Brasil, usam modelos quase sempre muito parecidos entre si. Isso é notavelmente diferente do mercado de capitais, que opera com formas muito variadas de direcionar recursos para investimentos em diferentes estágios de maturidade e perfis de risco. Enquanto o volume de investimento em uma grande empresa é uma decisão coletiva de milhares de indivíduos interagindo no mercado de ações, o financiamento de uma startup pode ser garantido por um único “pitch de elevador” para um investidor anjo arrojado, o que ajuda a fomentar a diversidade de empreendimentos. E é difícil deixar de pensar que, em termos de criatividade, a academia parece ter ficado para trás nesse campo.
E o maior problema de todos é que, quanto mais enrijecido o sistema, menos trivial é criar alternativas a ele. Cientistas que queiram se manter financiados não têm muita opção senão “seguir submetendo” (ou submetendo-se). Departamentos e pós-graduações que queiram ver seu corpo social financiado precisam avaliá-lo pelas mesmas regras. E as agências de fomento e outras instâncias superiores — talvez os atores com mais poder nesse ecossistema — geralmente são comandadas por cientistas que ascenderam por décadas dentro das regras do sistema, e que já têm dificuldade de ver que existem possibilidades além dele.
Com isso, continuamos a nadar em cardume contra uma corrente cada vez mais forte de burocracia, que passamos a enxergar como uma força da natureza, ao invés de uma consequência de como escolhemos nos organizar (ou deixar de fazê-lo). No processo, impulsionamos uma ciência acadêmica que avança a passos trôpegos, mais curtos e menos relevantes do que poderiam ser. E talvez o sistema só mude quando a sociedade do lado de fora resolver quebrar o aquário, antes que seja tarde demais.
Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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