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A jornada do parto humanizado retratada em uma HQ

Camilla Hoshino e Carolina Pelegrin

28 de março de 2025(atualizado 28/03/2025 às 22h15)

De Fernanda Baukat e José Aguiar, ‘Debaixo D 'água’ traz um relato autobiográfico sobre a luta por informação, suporte e protagonismo da gestante no parto

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ARTIGO ORIGINAL

A jornada do parto humanizado em um História em Quadrinhos

Portal Lunetas

27 de março de 2025

Autoria: Camilla Hoshino e Carolina Pelegrin

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FOTO: Divulgação

Detalhe da capa de ‘Debaixo D’água’

A busca por um parto humanizado pode se tornar um desafio em um país campeão em cesáreas. A reflexão toca gestantes e pais que aguardam um momento acolhedor na hora do nascimento de seus filhos, e é a principal temática do livro “Debaixo d ‘água” (Nemo). Narrada por uma História em Quadrinho escrita pela produtora cultural Fernanda Baukat e pelo quadrinista José Aguiar, o enredo se baseia na vida do próprio casal que, em 2009, teve o primeiro filho, Heitor. Assim, entre a descoberta da gestação ao nascimento, o leitor acompanha o “tornar-se mãe” como um caminho cheio de amor, medos e decisões.

Segundo os autores, essa é apenas mais uma história sobre nascer. “Ela é banal, corriqueira, acontece todos os dias”, escreveu Fernanda no prefácio do livro. Mas por ser tão comum, muitas vezes a mulher e o bebê que estão ali, com suas particularidades e experiências únicas, se tornam ocultos pela pressa e pela rotina hospitalar.

“Ainda estamos em uma cultura machista, em que o papel da mulher, principalmente no que diz respeito às escolhas relativas a seu próprio corpo, é deixado em segundo plano”, relata Fernanda Baukat.

Para se ter uma ideia, no Brasil, em 2023, 40% dos nascidos vivos foram por parto normal, enquanto 59% dos partos foram por cesáreas. Ou seja, os índices apontam que o país teve 74% de cesarianas acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 10 a 15%. Dentre as cirúrgias realizadas no país naquele ano, 45% das gestantes receberam classificação positiva para parto normal pela Classificação de Robson, figurando nos grupos de 1 a 4. Segundo a escala, este intervalo representa “maior chance de parto vaginal”. Ou seja, essas gestantes possivelmente representam um grupo de mulheres que passou por uma cesária desnecessária.

A classificação de Robson foi desenvolvida em 2001 por Michael Robson e é utilizada para monitorar e avaliar as taxas de cesáreas em hospitais. Incentivada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o uso da classificação pode otimizar as indicações de cesáreas, revelando se há excessos. Para isso, existem 10 grupos de classificação. Portanto, quando classificadas nos quatro primeiros grupos, as gestantes têm “maior chance de parto vaginal”. Já o grupo cinco refere-se a “alguma chance de parto vaginal”, enquanto os grupos seis até dez representam “menor chance de parto vaginal”.

“Tivemos que descobrir da pior forma possível”, diz José. Na época pai de primeira viagem, o autor recorda a necessidade de buscar mais informações que os fizesse sentir seguros em relação ao momento do parto. “Mas percebemos o quanto a questão do lucro estava envolvida no agendamento das cesáreas, na pressa em organizar os partos”. Por isso, para ele, o livro se tornou uma espécie de desabafo, mas também uma denúncia.

“Debaixo D’água”, de Fernanda Baukat e José Aguiar (Nemo)

Uma narrativa íntima e autobiográfica de um casal em busca de um parto que respeite o tempo, os anseios e o direito de escolha das famílias sobre o nascimento. A jornada de Fernanda Baukat e José Aguiar, ambientada em 2009, é recheada por ilustrações sensíveis em aquarela e lápis de cor. Além de trazer informações sobre as dificuldades no sistema de saúde brasileiro, o livro reflete sobre a necessidade de atendimento mais empático e humano às gestantes. Narrada em história em quadrinhos, a inspiração foi o nascimento do primeiro filho do casal, quando Fernanda publicou seu relato de parto no blog intitulado ‘Debaixo D’água’.

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Parto humanizado é parto com informação

Pensando em transformar essa realidade, o governo brasileiro desenvolve o programa “Parto Adequado” desde 2015. Com evidências científicas, a iniciativa encoraja a redução “segura do percentual de cesarianas desnecessárias”, aumentando então a qualidade e a segurança do parto e nascimento com informação e conscientização sobre esse momento.

Regulamentado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o projeto já passou por duas fases iniciais de teste. A ação incluiu parcerias com hospitais e operadoras de planos de saúde. Agora, na fase 3, nomeada de “Fase da Campanha Nacional”, pretende disseminar as estratégias aprendidas para melhorar a qualidade do parto no país.

No entanto, ao contrário do que pode parecer, parto normal não é garantia de parto humanizado. Da mesma forma, uma cesária pode acontecer de forma humanizada. O que define um parto humanizado é principalmente o protagonismo da mulher. Para isso, aspectos emocionais, sociais e até culturais precisam ser levados em conta. Segundo a pesquisa “Estudo Materna: o que pensam e querem as mães”, realizada pelo site Universa da Uol, 56% das gestantes relataram que não tiveram um parto humanizado. E isso inclui aquelas com parto normal.

Para Fernanda, são as “experiências compartilhadas, dados científicos e informação de qualidade que deveriam ser o ponto de partida da escolha para qualquer mulher”.

Dentre os indicadores analisados pelo programa do governo federal está o percentual de partos vaginais assistidos por um profissional de enfermagem obstétrica. A presença desse especialista durante o parto cresceu 75% de 2017 até 2022, segundo relatório da ANS.

Não por acaso, a enfermeira obstétrica é reconhecida globalmente por reduzir intervenções desnecessárias e promover partos mais seguros, alinhando-se ao movimento pela humanização do parto. Dentre suas responsabilidades estão garantir direitos de cidadania, respeitar a fisiologia feminina e oferecer suporte emocional à mulher e à família.

Tornar-se mãe sem perder a identidade

Nas primeiras páginas do livro, Fernanda conta da inquietação que sentiu ao ser chamadade “mãe” e não pelo nome por enfermeiros da sua idade, e até mesmo por pessoas mais velhas. Tudo já nas poucas semanas de gestação. “Esse foi o aperitivo que me prepararia para a perda de personalidade que viria a seguir”, escreve. Ou seja, a nova nomenclatura para as gestantes se torna um desafio até de identidade. Isso porque essa terceira pessoa do singular, a “mãe”, pode soar como uma imposição biológica, e que pesa mais que seus próprios nomes.

“Será a despersonalização proposital para que essa ex-mulher, agora mãe, cumpra esse papel sem questionamentos, sem escolhas?”, questiona a autora.

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Diante desse processo, José recorda como o suporte da doula foi essencial para amparar a personalidade que vem antes da mãe, garantindo protagonismo de Fernanda sobre sua própria história. Na maioria dos casos, a doula cumpre um papel importante na educação perinatal, sendo um ponto de apoio informativo, físico e emocional às mulheres durante a gestação, parto e puerpério.

“Além de me ajudar a entender melhor o que estava acontecendo com minha esposa e seu corpo, ela me orientou sobre como eu poderia dar mais suporte à Fernanda, dentro das minhas limitações”, acrescenta José, que também viveu a transição de tornar-se pai.

Desde o início da gestação, o cartunista entendeu a importância de estar presente, não apenas nas consultas, mas oferecendo carinho e disponibilidade àquela relação. Ele relembra o período de dúvidas e alegrias. “Quando o bebê chega, ele encontra conexão entre o casal. Isso faz com que tudo flua de forma mais amorosa”, defende José.

Histórias que chegam além do círculo da maternidade

nascimento é um momento universal. E mesmo o retrato de ‘Debaixo D’água’ sugerindo que cada parto carrega singularidades, ao mesmo tempo, é uma experiência compartilhada. Na obra, Fernanda Baukat e José Aguiar se inspiraram em diversas histórias para ir além de uma narrativa autobiográfica. Assim, oferecerem um espaço de reconhecimento e conscientização sobre a importância do protagonismo feminino nessa construção conjunta.

O problema, segundo a autora, é “quando a mulher se torna uma engrenagem, deixa de ser humana e perde seu protagonismo”. Desse modo, ela enfatiza a importância de resgatar a essência do nascimento juntamente ao protagonismo da mulher. Essa humanização, portanto, inclui a presença de profissionais capacitados e a valorização de quem ela deseja ao seu lado.

“Falar sobre parto humanizado é falar sobre a vida das pessoas, como elas vieram ao mundo e como podem fazer outras pessoas virem ao mundo”, reflete José.

Por isso, José explica que a HQ ecoa muito além das experiências de gestantes. Isso porque há um retorno inesperado de leitores solteiros ou mesmo homens que ainda não são pais. É desse modo que o livro mexe com anseios coletivos. Os principais são os altos e baixos do relacionamento amoroso, suporte do sistema de saúde e os desafios de gerar uma vida de forma responsável.

“Debaixo D’água” é mais que um convite à reflexão. A história nos lembra que apoiar gestantes, respeitar seus desejos e promover um sistema mais humanizado é um compromisso coletivo. Começa com a escuta, o diálogo e a valorização das histórias individuais. Afinal, cada nascimento carrega a possibilidade de transformar não apenas uma vida, mas toda uma rede de relações que sustenta a chegada de um novo ser ao mundo.

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A seção “Externo” traz uma seleção de textos cedidos por outros veículos por meio de parcerias com o Nexo ou licenças Creative Commons.

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