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Olavo Amaral

A revanche silenciosa da cloroquina

29 de outubro de 2024

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Revisitar a improvável saga do medicamento mais odiado da última década é um exercício de humildade para o establishment científico

Ninguém mais esperava que isso fosse acontecer em pleno 2024. Mas no dia 12 de setembro foi publicado o maior estudo já realizado sobre profilaxia farmacológica de covid-19. Capitaneado pelo Centro de Medicina Tropical e Saúde Global da Universidade de Oxford, o COPCOV reuniu mais de 70 autores e 26 centros médicos em 11 países e três continentes para testar o efeito da hidroxicloroquina e da cloroquina – sim, elas mesmas – na prevenção da doença em indivíduos não vacinados em risco de contágio.

Iniciado em abril de 2020 e conduzido aos trancos e barrancos em meio a um campo minado de polêmicas até março de 2022, o estudo, randomizado e duplo-cego, reuniu 4.652 participantes não vacinados – número bem inferior ao inicialmente planejado – antes de ser encerrado. Ainda assim, só foi publicado na revista PLoS Medicine mais de dois anos mais tarde, depois de um ano inteiro enfrentando o processo de revisão por pares. 

Os resultados? O grupo tratado com hidroxicloroquina (na Europa e na África) ou cloroquina (na Ásia) teve uma prevalência 15% menor de infecções confirmadas do que o grupo tratado com placebo após três meses de seguimento – um resultado que bateu na trave dos limiares costumeiramente usados de significância estatística. Entre os desfechos secundários, a profilaxia esteve associada com diminuições mais robustas de 39% em infecções confirmadas por PCR e de 13% nos dias de trabalho perdidos por doença, mas não na prevalência de infecções assintomáticas ou na severidade de sintomas. Tampouco levou a um aumento de efeitos adversos graves, cuja incidência foi inclusive maior no grupo placebo.

Ainda que os resultados sejam modestos, eles são bastante compatíveis com a evidência agregada dos estudos anteriores – que como já indicava uma metanálise publicada em 2022 e analisada por essa coluna na época – apontavam para um benefício dessa magnitude. Uma análise atualizada incluindo o COPCOV feita pelos próprios autores do trabalho estima uma redução de 20% na chance de infecções com a profilaxia, com uma concordância notável entre os estudos incluídos e um intervalo de confiança de 95% do efeito – a popular “margem de erro” das pesquisas eleitorais em que você espera encontrar o valor real 95% das vezes – entre 9 e 29%. 

Até uns anos atrás, o anúncio teria causado espanto, revolta, euforia e polêmica. Em 2024, porém, ninguém parece se importar mais. Afora os sites das instituições envolvidas e os cloroquiners irredutíveis do Médicos pela Vida, basicamente ninguém se prestou a comentar o estudo, que passou em branco na mídia – como já havia acontecido com o PRINCIPLE, um ensaio clínico tardio sobre a ivermectina que também sugeriu algum benefício. E os próprios autores concedem que, com vacinas, tratamentos e virulência diminuída da covid-19, existe pouca ou nenhuma razão para fazer profilaxia para a doença em 2024. 

Ainda assim, eles também colocam que, se os resultados estivessem disponíveis em 2020 ou 2021, enquanto não havia vacinas e o vírus tinha uma letalidade mais alta, o uso profilático da droga poderia ter cumprido um papel relevante. E que a polarização associada à cloroquina – um efeito colateral do medicamento ter sido assumido como bandeira política por políticos de extrema direita ao redor do mundo – comprometeram a avaliação objetiva do tema pela comunidade científica.

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Já é tarde para tomar o caminho contrário e dar uma chance à hidroxicloroquina no auge da pandemia. Com isso, é provável que nunca possamos mensurar o impacto da politização do medicamento, e de sua consequente demonização por um meio acadêmico pouco simpático aos seus defensores, sobre o saldo de vidas ceifadas pela covid-19. Por um lado, a evidência de um benefício do medicamento como profilático tem se tornado cada vez mais convincente. Por outro, grandes ensaios clínicos em pacientes hospitalizados são consensuais em apontar a ausência de benefício e potenciais riscos com o uso da droga.

Entre uma coisa e outra, está o uso da droga em pacientes ambulatoriais – o tão falado “tratamento precoce” que mobilizou amor e ódio no imaginário popular durante a pandemia. Nesse cenário, a questão é mais nebulosa, e metanálises existentes oscilam entre um benefício modesto na prevenção de hospitalizações (ainda que com um grau de incerteza bem maior do que o observado na profilaxia, por conta do baixo poder estatístico dos estudos que avaliaram a questão) e a ausência de efeito – resultados que justificam a não inclusão do medicamento em recomendações oficiais de tratamento, mas não a afirmativa de que ele é “comprovadamente ineficaz”.     

Não estou trazendo isso à tona para tomar partido no assunto – o que requereria ler essa literatura com um tempo e grau de atenção de que já não disponho. Mas não me importa tanto quem estava certo a essa altura do campeonato – até porque a evidência existente foi construída em um mundo de variantes mais letais do SARS-Cov2 e pacientes não imunizados que já não existe. Escrevo apenas para apontar o fato de que existe uma margem legítima de incerteza sobre o tema – e que ela provavelmente sempre existiu. Ainda que você provavelmente não saiba disso, porque ambos os lados do espectro político passaram os últimos anos dedicados a varrer qualquer dúvida sobre o assunto do mapa.

Se para os entusiastas do medicamento a dúvida nunca chegou a existir, do lado do establishment científico, a cloroquina não demorou a ganhar o status de terraplanismo após alguns ensaios clínicos negativos – mesmo que esses não fossem grandes o suficiente para afastar um benefício modesto do uso ambulatorial. Não saberia dizer o número de vezes que ouvi no meio acadêmico que “temos que defender a formação em ciência para que as pessoas não tomem cloroquina”, ou de ver imagens de Bolsonaro oferecendo o remédio como uma espécie de stock image para falar de negacionismo – inclusive nos meus próprios artigos. Da mesma forma, tornou-se lugar-comum a ideia de que a droga foi responsável por milhares de mortes durante a pandemia, mesmo que a evidência para afirmar isso seja indireta, pouco confiável ou simplesmente fraudada

A grande mídia, aliás, é profícua até hoje em usar o fato de alguém ter defendido a cloroquina para colar o rótulo de “anticiência” em médicos, cientistas, políticos, jornalistas e personas non gratas em geral. Não que boa parte dessas pessoas não faça jus a ele por conta de inúmeras outras razões. Mas é irônico que o sinal patognomônico de sua rejeição da ciência seja uma causa que, do ponto de vista científico, é até bastante defensável.

E o que me preocupa de verdade é que a imensa maioria dos militantes que falam “em defesa da ciência” – seja na imprensa, em congressos científicos ou nas redes sociais – sequer fazem ideia disso tudo, e não parecem ter gastado mais de cinco minutos para se aprofundar na evidência sobre o assunto. O que parece indicar que as posições apaixonadas e antagônicas sobre o medicamento são explicáveis quase que totalmente pelas fontes de informação usadas por diferentes indivíduos.

No fundo, isso é apenas inevitável: qualquer um de nós só tem tempo para se aprofundar em uma meia dúzia de temas, ou nem isso, e se informar a partir da opinião de outras pessoas é absolutamente normal. O que me incomoda é a dificuldade dos autoproclamados defensores da ciência em admitir esse fato – o de que estamos no escuro sobre quase tudo, e que se orientar no mundo é menos uma questão de conhecimento ou formação científica do que de conseguir escolher fontes de informação com menos chances de errar.

E depois de alguns anos estudando o debate em torno da hidroxicloroquina, por conta de um ensaio que sai em livro em 2025, a principal lição que tiro é sobre humildade epistêmica. Ver que quase todo mundo tem opiniões convictas sobre um tema em que dezenas de horas de estudo não foram suficientes para me dar certezas me faz perceber o quanto minhas próprias convicções sobre outros assuntos, do aquecimento global à taxa de juros, foram determinadas por outras pessoas. O que tem me tornado bem mais ponderado em opinar sobre eles em aulas, redes sociais ou mesas de bar.

Mas meu silêncio pessoal não vai salvar o mundo dos riscos de consensos precipitados – que ocorreram não só com a hidroxicloroquina como com diversos outros temas relacionados à pandemia. Isso só acontecerá se a ciência acadêmica e as instituições que fazem uso dela – como autoridades de saúde, veículos de mídia ou tribunais jurídicos – possam incorporar um espírito semelhante em sua prática cotidiana.

E se há uma primeira mudança óbvia de comportamento a ser feita, ela é desencanar da ideia de que “combater a desinformação” é uma panaceia para que a ciência vença a batalha contra as trevas e espalhe suas benesses sobre todos nós. É óbvio que existem temas de consenso em que é fácil apontar falsidades: a terra é mais esférica do que plana, o tabagismo está associado com o câncer de pulmão além de qualquer dúvida razoável, e assim por diante. Para esses temas, ignorar os dissidentes é saudável, e por vezes necessário para não criar falsas controvérsias.

Mas para boa parte dos assuntos, a evidência científica é bem menos sólida do que gostaríamos, e não costuma ser fácil de navegar. Com isso, convicções diferentes a respeito da melhor forma de interpretar dados podem facilmente levar especialistas a assumirem posições opostas por razões absolutamente defensáveis. Nesse cenário, a equivalência da cloroquina com o terraplanismo no imaginário da maior parte da população – incluindo aí a comunidade científica – é uma prova viva de nossa dificuldade coletiva de separar os temas em que o consenso é óbvio daqueles em que ele não é.

E enquanto não criarmos formas melhores de fazer isso, não parece haver opção senão deixar o debate público acontecer – o que hesitamos em fazer mesmo dentro da academia. O próprio fato de que um ensaio clínico leve um ano inteiro sendo revisado por pares antes de ser publicado é fruto da expectativa – ao que tudo indica irreal – de que um punhado de guardiões da verdade vá conseguir separar o joio do trigo. As soluções para agilizar o processo existem há tempo – preprints estão aí há mais de três décadas – e o fato de darmos tanta bola para o que pensam dois ou três revisores atesta o excesso de confiança em nossos mecanismos de controle.

Espero que a redenção tardia da cloroquina sirva como uma lição de humildade que nos faça refletir sobre o que fazer para manter a confiança na ciência

E à medida que enfrentamos um dilúvio de conteúdo de qualidade heterogênea – que a dicotomia algo maniqueísta entre “informação” e “desinformação” nem sempre dá conta de descrever – me preocupa que o mundo tenha sido contaminado pela nossa soberba e comprado a ideia de que “a ciência não tem dois lados” e é capaz de se autorregular perfeitamente. E nesse processo, tenha construído a crença de que definir o que é uma verdade científica vá ser uma tarefa facilmente executável por checadores de fatos, algoritmos de redes sociais ou tribunais jurídicos.

Por sinal, minha demora para falar do COPCOV se deve ao fato da rede social pela qual eu costumava ficar sabendo dessas coisas ter sido bloqueada por uns tempos – coincidência ou não, com o mesmo mote de “enfrentar as fake news”. E é no mínimo curioso que eu tenha ficado sabendo do estudo através do site do Médicos pela Vida – ou mais precisamente de seu redator Filipe Rafaeli, tetracampeão brasileiro de acrobacia aérea, ativista antivacinas e checador de checagens de fatos – com quem eu calhei de estabelecer um canal de comunicação durante a pandemia para falar dessas coisas.  

Esse tipo de contato tem me ajudado a me dar conta de que esse papo de “defensores da ciência” vs. “negacionistas” é meio balela. No fim das contas, somos todos seres humanos, mal-informados sobre quase tudo, tentando se orientar em um cenário de evidência insuficiente e complexa em meio ao ruído do mundo e a uma infinidade de vieses pessoais. E se eu discordo de Rafaeli em quase tudo no que diz respeito à covid-19, isso tem menos a ver com desinformação, e mais com nossos graus variáveis de familiaridade com o processo científico e de confiança nas instituições responsáveis por ele.

Porque apesar de tudo que foi dito acima, eu ainda confio que a ciência – não o processo idealizado dos livros-texto, mas o empreendimento humano com “c” minúsculo que tenta colocá-lo em prática – tende a acertar mais do que errar. Uma convicção que tem muito a ver com estar ocupado em tentar mudá-la pelo lado de dentro. Mas quando as instituições científicas jogam ideias defensáveis no balde do terraplanismo, levando jornalistas a ridicularizá-las e algoritmos a censurá-las a despeito da evidência disponível, é difícil culpar alguém que olhe de fora e enxergue isso por perder essa confiança.

E espero que a redenção tardia da cloroquina sirva como uma lição de humildade que nos faça refletir sobre o que fazer para manter a confiança na ciência. Quando você passa a depender dos ativistas antivacina para se informar sobre um tema, porque eles acompanham a evidência melhor do que um establishment ocupado demais em controlar o discurso sobre ela, o buraco de minhoca da teoria da conspiração é logo ali adiante. Acho que eu não entrei por ele ainda. Mas se tem tanta gente embarcando, cabe pensar se não é por culpa nossa.

Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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