Coluna

Olavo Amaral

A radicalização democrática da ciência

27 de novembro de 2024

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Reflexões sobre a sobrevivência do conhecimento em tempos conturbados

No dia 6 de novembro de 2024, o mundo acadêmico acordou abalado. Com folga surpreendente, Donald Trump tinha sido eleito presidente dos Estados Unidos pela segunda vez, desta vez contando com maioria tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado. E dado o histórico de conflito do republicano com agências de caráter técnico-científico, como o CDC (Center for Disease Control) e a EPA (Environmental Protection Agency), a comunidade científica começou a preparar-se para o pior.

Editoriais e artigos de opinião em veículos como a Nature, a Science e a Scientific American – todas as quais tinham apoiado implícita ou explicitamente a candidata da oposição – expressaram os temores da comunidade em relação ao próximo governo. Dentre eles, o principal é o de que a ascensão de Trump leve ao aumento do ceticismo em relação a experts e consensos científicos e à erosão de políticas baseadas em evidências.

Tentar ensinar o cidadão médio a avaliar evidência científica em campos nos quais ele não possui expertise é quase sempre uma utopia

Não demorou para os primeiros movimentos de Trump após a eleição darem razão e forma a esses medos. Em seu gesto mais paradigmático, ele anunciou o nome do candidato independente Robert F. Kennedy, Jr., que tinha abdicado da corrida à Presidência em apoio ao republicano – como secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos. Embora a nomeação ainda tenha de ser aprovada pelo Senado, a dominância de Trump sobre seu partido e a popularidade da nomeação junto ao público faz com que a aprovação seja, se não provável, pelo menos possível – o que tem causado arrepios entre cientistas da área da saúde.

Resumindo em poucas palavras, RFK Jr. é um conspiracionista de carteirinha. Para além do ativismo antivacinas pelo que se tornou mais conhecido, o político – que é advogado e não possui credenciais formais na área da saúde –  já questionou a associaçao entre o HIV e a Aids, apoiou tratamentos controversos na pandemia de covid-19 e há anos reverbera inúmeras teorias populares – e pouco aceitas pela comunidade científica – sobre riscos à saúde causados por fluoretação da água, sinais de celular e trilhas de vapor de avião, entre outros. 

Para além desse histórico, RFK Jr. foi logo ameaçando de demissão funcionários de agências que estarão sob sua jurisdição, como a FDA (Food and Drug Administration) e os NIH (National Institutes of Health) – que ele acusa de suprimir tratamentos efetivos para favorecer a indústria farmacêutica. A indignação da comunidade científica, porém, não muda o fato de que, dada a chancela popular concedida a Trump, esse deva ser o novo normal nos próximos anos. E talvez seja uma tendência que veio para ficar.

Minha melhor sugestão para os que se perguntam “como chegamos aqui?” é um artigo de 2016 do jornalístico político conservador Andrew Sullivan, publicado na New York Magazine e traduzido no Brasil pela Piauí. Nele, o autor defende que a ascensão de políticos heterodoxos como Trump é apenas a evolução natural da democracia, que em suas próprias palavras, “acaba quando se torna democrática demais”.

Para Sullivan, cujo argumento faz eco a ideias expressas na “República” de Platão, a perda de autoridade e dominância cultural das elites, facilitada pelo advento da internet e das mídias sociais, leva a uma radicalização da democracia que acaba por devorar a si mesma. Em um mundo em que as regras do jogo ficam mais simples, e a expertise política tradicional se torna dispensável, é apenas questão de tempo para que um outsider conquiste a população vendendo a promessa de reformar um establishment corrompido pelo clube seleto que o ocupa.

Ainda que tenham se passado oito anos, essa segue sendo para mim a melhor chave de compreensão para a ascensão não só de Trump, mas de Jair Bolsonaro, Pablo Marçal e tantos outros que, vindos de backgrounds radicalmente diferentes, partilham a retórica do “homem comum”, cuja experiência aprendida com a vida é capaz de resolver os problemas que os políticos tradicionais não conseguem solucionar. E se Trump e seus parceiros representam a radicalização democrática da política, é apenas razoável pensar que RFK Jr., ao seu modo, seja um prenúncio da radicalização democrática da ciência.

Antes de seguir adiante, cabe ressaltar que eu dediquei – e ainda dedico – boa parte da minha carreira à democratização da ciência. Há anos milito por acesso aberto a periódicos científicos, abertura de dados e materiais de pesquisa e adesão a preprints. Comandei projetos de pesquisa baseados em crowdsourcing e coordenei hackathons com lemas faça-você-mesmo como “um notebook na mão e uma ideia na cabeça”. E o próprio fato de estar escrevendo essa coluna, ao seu modo, é fruto de achar que vale a pena discutir as mazelas do mundo científico com o mundo lá fora.

Dito isso, a pandemia de covid-19 me fez repensar os limites dessa democratização. Para muita gente, o aumento no interesse por temas científicos trazido pela crise sanitária foi um ponto alto da comunicação pública da ciência, com as contribuições de cientistas e divulgadores ao debate na mídia e nas redes sociais sendo saudadas como fundamentais

Depois de alguns anos acompanhando alguns desses debates, minha visão do que aconteceu é um tanto mais pessimista. Mais do que gerar uma discussão propositiva, a proliferação de discursos científicos em um campo de ideias polarizado por atores políticos gerou um mercado de racionalizações: uma oferta quase inesgotável de argumentos “baseados em evidências” para que cada cidadão pudesse defender suas posições favoritas – geralmente já tomadas de antemão por afinidades políticas – como se falasse em nome da ciência.

E seria ingênuo pensar que esse tipo de coisa só acontece com gente desinformada, ou que é exclusividade das redes sociais de direita. Pelo contrário, a transformação de certas questões em um embate a céu aberto nas redes sociais fez com que posições de ambos os lados se cristalizassem para além de qualquer possibilidade de debate racional. Se você discorda, sugiro que dê uma olhada na reação histérica das redes à minha coluna anterior, um questionamento até bem comedido que levou divulgadores científicos a escreverem artigos me acusando de representar grupos negacionistas antivacina. Não porque isso tenha qualquer fundo de verdade, mas porque batalhas da luz contra as trevas geram mais engajamento popular do que debates com nuances, o que faz com que lá pelas tantas esse embate se torne a única chave de compreensão para certos temas na cabeça de muita gente.

RFK Jr. surfa a mesma tendência de democratização combativa da ciência. Como outros membros ilustres do campo antivacina, é um sujeito inteligente e articulado que envereda por um campo em que não tem treinamento particular, adquire suas convicções “fazendo sua própria pesquisa”, resolve que as instituições estão erradas, e propõe soluções radicais e intuitivas que acabam por torná-lo um herói popular. Fazendo jus, aliás, a uma tradição científica de não-conformismo que vem desde Galileu Galilei, o que faz com que o rótulo de “anticiência” seja uma descrição ruim do fenômeno.

Acompanhar essas trajetórias me faz pensar que tentar ensinar o cidadão médio a avaliar evidência científica em campos nos quais ele não possui expertise é quase sempre uma utopia. Mesmo para quem tem formação acadêmica, tomar posição em um tema qualquer requer um tempo – e um grau de isenção – do qual a maior parte de nós não dispõe. Por conta disso, minha principal conclusão sobre comunicação pública da ciência hoje em dia é que ela deveria ser tão institucional e objetiva quanto possível. Não por acaso, a única recomendação de saúde que você encontrará nesta coluna é “siga as autoridades sanitárias”, porque minha expertise raramente é suficiente para dar um conselho melhor.

O que parece uma heurística razoável, até o dia em que você acorda e descobre que um RFK Jr. da vida é o novo ministro da Saúde.

É verdade que o drama não é novo. Nos quatro anos do primeiro governo Trump – ou do oxalá único governo Bolsonaro –, houve ataques às instituições, tentativas de suprimir evidência e apagões de dados, que são parte da razão pela qual cientistas se lançaram às redes sociais. Ainda assim, afora espasmos como o protocolo de tratamento com hidroxicloroquina do Ministério da Saúde (que confessava no próprio texto a ausência de evidência para isso) ou o aplicativo TrateCov (que receitava cloroquina para bebês), as instituições resistiram razoavelmente bem. Graças a uma rede de resistência que incluiu prefeitos, governadores, deputados, tribunais, instituições de pesquisa e funcionários de carreira, tanto Trump como Bolsonaro estiveram mais frequentemente isolados do que amparados na pandemia, vendo agências de seus próprios governos operarem à sua revelia.

Dito isso, nada garante que as instituições vão resistir para sempre. Se em um primeiro governo Trump os Anthony Faucis da vida mantiveram seu emprego, isso talvez não aconteça em um segundo mandato, com uma maioria legislativa confortável e um conspiracionista comandando o Departamento de Saúde. Em algum ponto, mesmo as instituições mais técnicas de um governo acabam por ceder à pressão política – o que, novamente, talvez seja apenas a consequência natural da democracia em ação.

E quando isso acontecer, talvez seja preciso que a ciência resista por si mesma à radicalização democrática. Exceto que, na ausência de instituições, não é nada óbvio o que constitui “a ciência por si mesma” – ou quem pode falar em nome dela.

Uma resposta possível seria que a evidência fala por si só, mas isso é deveras ingênuo: a literatura científica é menos confiável do que gostaríamos, e “estar publicado em um artigo científico” é um sarrafo extremamente baixo – tornado ainda menor pelo fato da publicação acadêmica ter virado um negócio bilionário. Não por acaso, tomar o que está escrito nela como verdade sem filtro é uma das razões pelas quais formar opinião sobre temas científicos sem expertise na área acaba sendo um tiro no pé.

Outra alternativa seria “deixar os cientistas falarem”. Mas o que torna você um cientista com lugar de fala tampouco é óbvio. Ter publicado X artigos na área ou ser professor na universidade Y tem alguma correlação com entender de um assunto, mas não garante o rigor científico de ninguém. E a academia está repleta de malucos com posições heterodoxas, o que faz com que “ouvir os cientistas” acabe sendo apenas mais um mercado de racionalizações em que você sempre vai achar um expert para dizer o que você quer.

Ainda que nenhum desses critérios seja satisfatório, é de uma mistura caótica deles que emerge o tal “consenso científico”: uma entidade frágil e mal definida que expressa o que “a ciência diz” – ou, mais precisamente, o que a maior parte dos cientistas concluem ao olharem para os dados de que dispõem. Dito isso, entender quais são esses consensos – ou o quão consensuais eles são – costuma ser uma tarefa pouco óbvia para quem não entende do assunto. Que é justamente a razão pela qual existem instituições oficiais para traduzi-los e fazer recomendações à população.

Mas quando essas instituições são tomadas pelos hunos, isso nos deixa à deriva. E se eu esperneio tanto sobre a qualidade da ciência, é justamente porque me parece que precisamos fortalecê-la enquanto entidade independente, criando sistemas de verificação e avaliação de evidência que tenham um significado mais concreto do que “revisado por pares”. E que com isso sejam menos vulneráveis a governos populistas, algoritmos mal-intencionados, fraude em escala industrial e outras ameaças que não existiam quando foram criadas as bases do arcaico sistema de controle de qualidade que ainda vigora no mundo acadêmico.

O problema é que boa parte da comunidade científica não parece ter acordado para isso, e segue acreditando que slogans como “escute a ciência” vão funcionar, como se o que a ciência diz fosse sempre claro. Mas não é, o que faz com que o discurso científico fique ao gosto de quem usa esse argumento de autoridade. É certo que RFK Jr., se conseguir fazer sua devassa no FDA, vai invocar a “defesa da ciência” e a “desideologização das agências” para justificar a medida. E tentar resistir a ele invocando um consenso científico que não está escrito em lugar nenhum não vai funcionar como linha de defesa – porque para quem olha de fora, o argumento usado por ambos os lados é o mesmo. 

Tudo isso me faz pensar que a gente tem trabalho institucional para fazer – e que esse trabalho tem de ser feito urgentemente, enquanto o prestígio da pesquisa acadêmica junto à sociedade ainda lhe concede liberdade para isso. Quando os bárbaros se aproximam fechando o cerco, a melhor alternativa não é descer para a planície das redes sociais gritando “ciência ou morte!” – o que de alguma forma nos equipara a eles. E sim trabalhar para fortalecer os castelos e instituições que sustentam o frágil acordo do consenso científico, de forma a torná-lo mais claro, confiável e isento de interesses externos.  

E quando mesmo essas instituições fazem água, nossa melhor opção é construir outras fortalezas, menos permeáveis aos ventos políticos – que talvez tenham de ser menos acessíveis e democráticas. Como eu mesmo disse quando comecei essa coluna, essa história de descer da torre de marfim sempre me pareceu menos importante do que a de construir uma torre mais robusta. Tempos sombrios me fazem dobrar essa aposta, para que tenhamos algo que permaneça intacto e ilumine o caminho até dias melhores.

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Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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