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Luiz Augusto Campos

A verdade (sobre o Pix) não nos libertará

21 de janeiro de 2025

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Não há dúvida de que a comunicação do governo apresenta resultados pífios, mas isso não é sinônimo de que os problemas de comunicação do governo sejam “apenas” problemas de comunicação

No novo capítulo da guerra cultural entre extrema direita e governo, uma corriqueira e tecnocrática resolução da Receita Federal ameaçou derreter a já estagnada popularidade de Lula. Tudo graças à reação em formato de vídeo — com menos de cinco minutos, mas mais de 300 milhões de visualizações — no qual o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG)  põe em xeque as intenções do governo em dar mais transparência ao Pix. 

Depois de tentativas frustradas de conter a celeuma, o governo admitiu a derrota e suspendeu a normativa. Ainda é cedo para saber as reais dimensões do estrago na opinião pública, mas a controvérsia continua, ao menos na Esplanada. Enquanto a oposição comemora o desfecho, seus correligionários e até mesmo o próprio presidente admitiram os erros do que denominam de “luta contra a desinformação”. Mas independentemente do lado em que se está nesse debate, emergiu o consenso de que há uma culpada por este e outros desastres políticos recentes: a descoordenação e incompetência da comunicação governamental.

Não há dúvida de que a comunicação do governo apresenta resultados pífios, mas isso não é sinônimo de que os problemas de comunicação do governo sejam apenas problemas de comunicação. Isto é, a dificuldade do governo em aumentar sua aprovação, mesmo com resultados bons na economia, não pode ser debitada somente no caos e na incompetência de uma secretaria, por mais atabalhoada que ela seja. Ao que indica a autocrítica de Lula e dos ministros envolvidos, o governo pretende mudar sua estratégia de comunicação, mas permanece partindo de uma concepção simplista e redutora do problema.

O vídeo de Nikolas Ferreira, por exemplo, está longe de ser uma megaprodução hollywoodiana, mas é muito mais bem produzido do que a soma de todos os stories postados por contas governamentais do Instagram. É também um vídeo  feito a partir de suspeitas exageradas com o objetivo de fomentar pânico e desconfiança, mais do que propriamente de mentiras ou fake news. 

Apesar disso, o governo continua agindo como se a doença fosse a desinformação e a posologia fosse a “mera verdade”. No meio da confusão, o ministro Fernando Haddad tentou explicar a normativa dezenas de vezes, quase sempre em seu conhecido tom professoral e enfadonho, em vídeos aparentemente gravados por um estagiário preguiçoso. Custo crer que houve sequer uma estratégia ou roteiro antes dessas peças.

Outras contas do governo tentaram inovar na resposta, mas foram exceções que acabaram por confirmar a regra. A partir de uma colagem aleatória ao som de uma paródia do hit musical de 2025, “Descer pra BC”, a conta do Banco Central no Instagram reforçou a premissa de que, contra a desinformação, caberia simplesmente elucidar o público da verdade numa “linguagem da juventude”.

Além de reduzir a política a um debate iluminista de ideias, essas premissas partem de uma concepção da comunicação política — e da política em si — excessivamente simplória. Tudo se passa como se o governo possuísse uma verdade a ser transmitida em sua essência para a massa desinformada que certamente cairia em si se não fosse distraída por um sem número de mentiras. Desse prisma, o termo “comunicação” é quase equacionado à noção de transmissão de conteúdos, quando muito de simplificação de uma mensagem para torná-la mais palatável ou apelativa ao público mais amplo. 

A rigor, a equipe de Nikolas Ferreira não produziu o vídeo do zero. O boato de que o governo taxaria o Pix circula desde 2022 e teve um pico de compartilhamentos em grupos de WhatsApp nos dias que sucederam a publicação das normas da Receita. Ciente disso, os publicitários do PL basicamente articularam em uma narrativa coerente as imagens e frases de efeito que já circulavam pelos grupos de Whatsapp.

Para além da sua qualidade técnica – que nem é tão inovadora assim – havia todo um caldo cultural de sensibilidades que o deputado e sua equipe souberam mobilizar. Apesar da linguagem aparentemente simples, centrada na fala pausada do parlamentar, na iluminação de mistério e no som de suspense, o vídeo é fruto do trabalho sofisticado de pesquisadores e publicitários, todos auxiliados por uma rede de viralização de conteúdos. A “verdade”, seja ela qual for, pode pouco contra isso.

É urgente que o campo progressista entenda a dimensão da guerra cultural e invista não apenas na disputa comunicacional, mas sobretudo na articulação de um projeto político capaz de amalgamar identidades e catalisar simpatias

Não estou argumentando que a estratégia  montada pelos neoconservadores seja imbatível, mas justamente o oposto. Desqualificar a  comunicação da extrema direita como mera “máquina de desinformação” nos impede de ver que ela se baseia em princípios elementares da comunicação política, do monitoramento sistemático da opinião de diversos grupos sociais à formulação de narrativas que dialoguem com os quadros interpretativos já em circulação na sociedade.

O foco na desinformação como problema ignora que a política moderna nunca pôde ser reduzida a uma oposição boba entre verdades e mentiras. Não sabemos muito sobre os métodos utilizados pelo governo e pelo PT para monitorar e compreender as visões da sociedade, mas seus pronunciamentos parecem reduzir a comunicação à mera injeção da verdade nas mentes dos cidadãos, figura que remete a uma visão arcaica da comunicação política como uma “agulha hipodérmica”. Curiosamente, o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, corroborou essa metáfora em entrevista à CNN, na qual argumentou que o governo busca uma “vacina rápida e eficaz” contra a desinformação baseada na resposta rápida e incisiva a fake news. Não é preciso saber muito sobre a velocidade dos fluxos internéticos atuais para duvidar de uma vacina tão célere assim.

O maior problema da comunicação do governo Lula não é apenas técnico, mas sim de visão. Nos seus primeiros mandatos, Lula acumulou índices altíssimos de aprovação não porque possuía uma boa equipe de comunicação – tão ou mais criticada que atual, diga-se de passagem –, mas porque formulou aos poucos um projeto nacional que amalgamou uma base governamental e apresentou resultados positivos incontestes. Esse projeto apontava para um Brasil sem fome ou miséria, com taxas de crescimento que garantissem a expansão da renda dos mais pobres e níveis de desemprego controlados, tudo sem ameaçar os mais ricos que também se beneficiaram de suas medidas. Tudo isso fez do lulismo uma identidade política em certo sentido mais difundida do que o próprio petismo.

E hoje, qual projeto nacional proposto por Lula em seu terceiro mandato? O mote “reconstrução e união” já antevê o peso do passado no discurso do governo: cabe a ele apenas consertar os estragos materiais e sociais deixados pelos anos de Temer e Bolsonaro. A princípio adequado em seu conteúdo, o lema deixa a desejar pelo marasmo de sua forma.

Algo similar acontece com sua agenda de reformas. Frente à farra das emendas parlamentares, o governo optou por concentrar seu capital político numa reforma tributária capaz de modernizar o sistema e tornar a taxação menos injusta. Novamente, o conteúdo da estratégia está correto: há provas cabais do papel que a tributação tem na mitigação das desigualdades e dinamização da economia. No entanto, é difícil calçar simbolicamente um governo numa reforma sobre um tema tão incompreensível quanto impopular. Diga-se de passagem, a concentração das energias na reforma tributária explica porque o discurso de que o governo só pensa em arrecadar mais impostos foi tão facilmente mobilizado por Nikolas Ferreira e seus assessores.

Do outro lado do espectro político, a principal lição que a extrema direita vem dando está na sua capacidade de articular um projeto que, por mais reacionário que seja, contém uma visão de futuro e uma teia de poderosos apoiadores. Esse discurso apresenta um potencial mobilizador que aponta para soluções claras, ainda que autoritárias. Evidentemente, ele também se beneficia muito da desregulação das redes sociais e das articulações internacionais de poderosos think tanks para gerar e difundir conteúdos.  Mas sem um projeto de futuro ousado, dificilmente essa extrema direita teria tanto sucesso quanto hoje.

Vivemos uma das maiores guerras ideológicas da história, só comparável à Guerra Fria. A extrema direita está armada com bons discursos, think tanks, pesquisas e, sobretudo, uma visão de futuro. O campo progressista, do outro lado, reduz essa guerra a uma “luta pela verdade contra a desinformação”, reduzindo-a a uma questão técnica.

Ainda que investimentos técnicos na comunicação do governo sejam fundamentais, eles não farão milagres. É urgente que o campo progressista entenda a dimensão dessa guerra cultural e invista não apenas em suas máquinas de disputa comunicacional, mas sobretudo na articulação de um projeto político capaz de amalgamar identidades e catalisar simpatias. Ainda que Lula seja hoje a maior liderança progressista viva no mundo, seu discurso vem deixando a desejar nesse ponto.

Luiz Augusto Camposé professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA. É autor e coautor de vários artigos e livros sobre a relação entre democracia e as desigualdades raciais e de gênero, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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