Debate
Compartilhe
Temas
Marcio Astrini e Stela Herschmann
COP26 adia para 2022 decisões sobre aumento de ambição das metas nacionais e expõe limite do Acordo de Paris para cumprir a própria meta
De todos os discursos ouvidos nas longas plenárias de encerramento da COP26, no sábado (13), talvez nenhum tenha sido mais contundente do que o da ministra do Meio Ambiente das Maldivas, Aminath Shauna. Ao dizer que seu país não se oporia ao texto de consenso adotado pela conferência em Glasgow (Escócia), Shauna fez questão de dar a real: “Quero notar que o que é equilibrado e pragmático para outras partes não vai ajudar as Maldivas a se adaptar a tempo. Enquanto reconhecemos o alicerce que este resultado provê, por favor, façam-nos a cortesia de reconhecer que ele não traz esperança aos nossos corações.”
A ministra foi além e trouxe um número que deveria causar pânico a qualquer pessoa que estivesse dentro ou fora daquela sala: o mundo tem apenas 98 meses para reduzir pela metade as emissões de gases de efeito estufa, se quiser cumprir a meta do Acordo de Paris de estabilizar o aquecimento global neste século em 1,5ºC.
Por mais que a COP26 tenha sido bem-sucedida em finalizar os últimos detalhes do manual de implementação do tratado do clima, ela postergou para a próxima COP, em 2022, a requisição para que os países aumentem a ambição de suas metas de corte de emissões. Ao transformar o que deveria ser uma emergência num compromisso a cumprir num calendário anual, Glasgow deu aos governos do mundo inteiro mais 12 meses para procrastinar. Quando 196 nações voltarem a se encontrar no balneário de Sharm El-Sheikh (Egito) no fim de 2022, serão 86 meses de prazo para saldar a dívida do clima.
Esse clímax permanentemente adiado em que se transformaram as conferências do clima tem dois efeitos perversos. Primeiro, cria nova expectativa da opinião pública sobre o momento de virada no combate à mudança climática, algo que parece não chegar nunca. Segundo, deixa os governos e os lobbies em volta deles bastante confortáveis para não fazer nada dentro de casa e esperar ver o que os amiguinhos apresentarão no fim do ano seguinte em termos de metas de corte de emissões (NDCs) – e, no caso dos países ricos, também de dinheiro na mesa para bancar a transição justa e a adaptação nos países pobres.
No mundo real, porém, as coisas acontecem num ritmo diferente do das COPs. Em maio deste ano, a Agência Internacional de Energia publicou seu primeiro cenário de mitigação compatível com a estabilização do clima em 1,5oC e sentenciou: nenhum novo projeto de petróleo e carvão mineral poderia ser licenciado no mundo a partir de 2021 se quisermos cumprir a meta de Paris. Em agosto, o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) aumentou o tom do alarme ao afirmar que, aconteça o que acontecer, o limite de 1,5ºC será ultrapassado nos próximos 20 anos; máximo a que podemos almejar é reduzi-lo a 1,4ºC no fim do século, mas para termos uma chance razoável de fazer isso seria preciso cortar as emissões mais ou menos pela metade nesta década.
Entre o relatório da IEA (International Energy Agency) e o do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), a Terra nos deu uma amostra grátis do que é um mundo 1,1ºC mais quente e um vislumbre do que poderia ser o mundo de 1,5ºC: num intervalo de poucos meses vimos chuva no topo do manto de gelo da Groenlândia, enchentes matando centenas na rica Europa Central, incêndios florestais devastando porções da Grécia e da Turquia, a Sibéria pegando fogo e oito meses de chuva desabando em 48 horas na China. O ano de 2021 está entre os sete mais quentes da história, e só não ficou no top 3 porque a La Niña resfriou as águas do Pacífico e baixou as temperaturas sobretudo no hemisfério Sul.
Ao transformar o que deveria ser uma emergência num compromisso a cumprir num calendário anual, a COP26 deu aos governos do mundo inteiro mais 12 meses para procrastinar
A “COP da ambição”, como foi apelidada, falhou em atacar essa realidade. Pior ainda, os países ricos deram uma banana dupla às nações mais vulneráveis. Primeiro, admitiram cinicamente, diante dos olhares complacentes da ONU, do direito internacional e da presidência britânica, que não cumpriram a meta de R$ 100 bilhões por ano em financiamento climático. O texto final “nota com profundo pesar” que o dinheiro não entrou e exorta os países desenvolvidos a cumprir a promessa no futuro – ficou nisso.
Também foi assassinada no berço a tentativa de criar um mecanismo internacional de financiamento para as perdas e danos decorrentes de impactos climáticos aos quais já não cabe adaptação, como os ciclones cada vez mais fortes que arrasam a África e o Sudeste Asiático. Foi proposta uma estrutura para captar e liberar de forma expressa recursos para perdas e danos, mas esta se transformou na resolução da COP26 num “diálogo”, termo vago o suficiente para não comprometer ninguém com nada.
Com tudo isso, a COP teve alguns sucessos: os acordos paralelos sobre florestas e metano, por exemplo, são apenas promessas não-vinculantes, mas tendem a ganhar importância. O primeiro, para citar apenas um caso, poderá criar amarras importantes para o Brasil. O governo o assinou sem nenhuma intenção de cumpri-lo. Só que os países compradores das nossas commodities, como EUA, União Europeia e, agora, a China, devem usar o compromisso como apoio a leis domésticas que vedem a importação de produtos com desmatamento. Isso já começou: o rascunho da lei europeia sobre o tema , publicado em 17 de novembro, faz menção específica à declaração de Glasgow.
Mais importante ainda, a conferência na Escócia registrou uma presença sem precedentes da sociedade civil – de Vanessa Nakate a Txai Suruí, passando pelo movimento negro e pelas mulheres. Dentro da conferência, o hub da sociedade civil brasileira recebia governadores, parlamentares e ONGs, indígenas, empresários e representantes de outros países, numa diversidade de diálogos e ideias que contrastava com o espaço frio, monocromático e sectário do regime Bolsonaro. As marchas de 5 e 6 de novembro no centro de Glasgow arrastaram dezenas de milhares e mostraram que a ficha da crise climática enfim caiu na opinião pública, que está à frente dos governos e não deve deixá-los fora do gancho nas próximas eleições. Glasgow não basta para garantir o que precisamos fazer em 98 meses. Se tem uma coisa que a conferência deixou claro é que, na agenda de clima, os objetivos só serão alcançados com uma maciça e constante mobilização da sociedade.
Marcio Astrini é secretário-executivo do Observatório do Clima.
Stela Herschmann é especialista em política climática do Observatório do Clima.
Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional e internacional. Para participar, entre em contato por meio de ensaio@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.
Destaques