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José Angelo Machado e Vanessa Elias de Oliveira
Comparativamente aos grandes países latino-americanos, os dados desautorizam dizer que o Brasil gaste mais ou o suficiente com saúde
A saúde ocupou o quarto lugar entre as preocupações dos eleitores brasileiros (15%) segundo pesquisa da Quaest realizada em julho, ficando apenas atrás da economia (21%), violência (19%) e fome/pobreza (18%). Será um dos grandes temas em debate nas próximas eleições municipais em todo o país. Mas, como melhorar os serviços municipais de saúde é uma questão a ser debatida. Por ser o SUS (Sistema Único de Saúde) um sistema, como o próprio nome diz, as soluções não são simples ou puramente locais dado o alto nível de interdependência entre decisões tomadas nos vários níveis de governo.
Um dos principais pontos, quando se fala em qualidade e quantidade dos serviços públicos ofertados à população, é o seu financiamento. Será que gastamos o suficiente e apenas precisamos melhorar a gestão, ou precisamos ampliar o financiamento público? Uma afirmação corrente no debate público é que “o problema da saúde não é dinheiro, é gestão”. Ela baseia-se na ideia de que o SUS já gasta muito ou, pelo menos, o suficiente para prover o direito à saúde para toda a população nos termos da nossa Constituição, ou seja, com acesso universal, integral e igualitário aos serviços. Segundo, que devemos buscar formas de gestão mais “eficientes”, podendo significar tanto a importação de modelos ou técnicas de gestão do setor privado, como a ampliação da participação do terceiro setor ou do setor privado na prestação dos serviços. Mas esse debate pode ser melhor qualificado ao analisarmos os dados sobre financiamento da saúde no país, por um lado, e sobre a realidade dos 5.570 municípios brasileiros, por outro.
Governos municipais enfrentam grandes desafios estruturais para superar os problemas locais do SUS
Sobre o financiamento, informações disponibilizadas pela Organização Mundial da Saúde mostram que, em geral, o Brasil gasta menos com saúde que os maiores países da América Latina, sejam federações (como Argentina e México) ou países unitários (como Chile ou Colômbia). Tomando o gasto em saúde como porcentagem do PIB (Produto Interno Bruto), entre 2012 e 2021, o Brasil gastou em média 3,92% enquanto a Argentina gastou 6,34%, o Chile, 4,36%, a Colômbia, 5,44%, e o México, 2,93% (só este último gastou menos com saúde). Tomando o gasto em saúde como percentual do orçamento público geral, o Brasil gastou 9,33%, mas a Argentina gastou 16,11%, o Chile, 16,71%, a Colômbia, 17,18% e até o México, nesse caso, 10,75%. Por fim, tomando o gasto per capita em dólar, o quadro não seria diferente. O Brasil gastou em média de U$ 372,93 por habitante/ano enquanto a Argentina gastou U$ 795,28, o Chile, U$ 645,39, a Colômbia, U$ 365,25 e o México, U$ 290,19 (só os dois últimos, embora a Colômbia quase empatada, abaixo do gasto brasileiro). Dos três critérios utilizados, apenas o México gastou menos do que nós em dois e a Colômbia em um.
Além disso, é exatamente no Brasil que o setor privado tem a maior participação no gasto total em saúde, considerando gastos público e privado. Também entre 2012 e 2021, na Argentina o gasto privado correspondeu a 36,11%; no Chile — que passou pela mais profunda reforma privatizante de serviços públicos do continente — a 49,50%; na Colômbia, a 29,18%; e, no México, a 48,52%. No Brasil essa proporção chegou a incríveis 56,71%. A despeito de sermos o único sistema nacional destinado a cobrir toda a população de forma igualitária e com prestação integral de serviços, é no Brasil que o setor privado tem uma participação significativamente maior no gasto total em saúde.
Comparativamente aos grandes países latino-americanos, os dados desautorizam dizer que o Brasil gaste mais ou o suficiente com saúde. Mas o financiamento não é o único problema, e isso fica claro quando comparamos os serviços produzidos pelo SUS nos diferentes municípios brasileiros. Daí segundo ponto a ser considerado é a desigualdade territorial.
De acordo com a Constituição, os municípios devem alocar, no mínimo, 15% de sua arrecadação para a saúde. Na prática, a maioria dos municípios aplica bem mais do que isso em serviços de saúde, atingindo a média de 23% dos recursos próprios. No entanto, a despesa municipal per capita com saúde correspondeu a R$ 1.096,75 no Nordeste, em contraste com os R$ 1.521,93 do Sudeste. Ou seja, além dos municípios sacrificarem receitas próprias, o gasto final é profundamente desigual, penalizando municípios menores e das regiões mais carentes, onde ele é muitas vezes insuficiente para contratar profissionais de saúde, manter serviços municipais funcionando e garantir acesso à toda população.
O Programa Mais Médicos, criado pelo governo federal em 2013, veio para minorar o problema da falta de médicos em municípios mais carentes do interior do país ou periferias metropolitanas, aqueles que têm mais dificuldade para fixação desses profissionais. O programa faz o pagamento dos médicos com recursos do governo federal, mas, ainda assim, não é suficiente para resolver as desigualdades territoriais na Atenção Primária. Além disso, há grandes vazios de serviços hospitalares e ambulatoriais mais especializados em várias regiões do país, o que poderia ser enfrentado por meio de uma política de investimento público sistemático e de médio prazo nessas regiões, algo distante em termos de emendas parlamentares pulverizando a alocação desses recursos.
Portanto, podemos concluir que os governos municipais enfrentam grandes desafios estruturais para superar os problemas locais do SUS. O primeiro deles é a necessidade de ampliar o financiamento público, e isso não é uma tarefa apenas dos gestores municipais, mas sim do próprio SUS. Em segundo lugar, precisamos enfrentar as desigualdades territoriais, garantindo as condições para que os gestores locais possam promover acesso adequado e igualitário aos munícipes de todo o país. Por fim, mas não menos importante, embora limitada pelos desafios anteriores, podemos e precisamos sim melhorar a qualidade da gestão municipal. Esta não é tarefa fácil, mas será cobrada nos debates eleitorais e, a partir de 2025, dos novos gestores públicos.
José Angelo Machado é Professor Associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, membro do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG e pesquisador do INCT-QualiGov (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas para o Desenvolvimento Sustentável).
Vanessa Elias de Oliveira é Professora de Ciência Política e Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), coordenadora do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da Fapesp e pesquisadora do Centro de Estudos da Favela (CEFavela – UFABC) e do INCT-QualiGov (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas para o Desenvolvimento Sustentável).
Esse artigo de opinião faz parte da série “O papel dos municípios no federalismo brasileiro”, produzido por pesquisadores do QualiGov (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável), no âmbito das eleições municipais de 2024.
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