O cenário da litigância climática no Brasil e no mundo

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O cenário da litigância climática no Brasil e no mundo
Foto: China Stringer Network/via Reuters

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Gabriel Sampaio


11 de setembro de 2024

Questão da ocupação e uso da terra é uma das maiores fontes de conflitos e desigualdades estruturais no país

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A emergência climática está cada vez mais presente em nosso cotidiano. Fatos sucessivos como chuvas intensas, enchentes, secas prolongadas, têm gerado impacto gravíssimo e debates intensos. 

O Brasil é o sexto maior poluidor climático do mundo e, de acordo com “A análise das emissões de gases de efeito estufa no Brasil”, produzida pelo Observatório do Clima, as mudanças no uso da terra, que incluem a devastação de todos os biomas, responde por 48% do total de emissões, a agropecuária por 27%, enquanto nossos processos industriais representam apenas 3% dessas emissões.

Avanço da litigância climática no Brasil tem como momento marcante o julgamento de diversas ações que abordaram políticas públicas de proteção e preservação do meio ambiente na Suprema Corte

Esse perfil se distingue dos países que ocupam lugar de destaque no ranking, como China, Índia e Estados Unidos, em que a maior parte das emissões se relaciona ao seu modelo tecnológico. Esse fato insere os desafios do nosso país num campo de maior facilidade aparente para atendimento das metas de redução. 

Contudo, o cenário é muito desafiador. A questão da ocupação e uso da terra é uma das maiores fontes de conflitos e desigualdades estruturais no país. 

É importante lembrar que o primeiro capítulo da nossa soberania é marcado por compromissos em torno da manutenção do modelo escravocrata, legitimado em nossa primeira Constituição e preenchido por normas jurídicas que reservaram às instituições nacionais tarefas importantes para garantia desse modelo e de sua lenta transição para o regime de mão de obra livre. 

A Lei de Terras, de 18 de setembro de 1850, publicada duas semanas depois da Lei Eusébio de Queiroz, que determinava medidas de repressão ao tráfico de escravos, cumpriu o papel de interditar a possibilidade de serem adotadas políticas de integração social e econômica de trabalhadores escravizados e seus descendentes, por meio da distribuição de terras. 

O impacto dessa interdição do acesso à terra por trabalhadores vindos de África foi acentuado pelas assimetrias de tratamento em relação a própria mão de obra imigrante atraída da Europa na segunda metade do século 19, conformando arcabouço jurídico-institucional em torno da legitimação e sustentação dessas desigualdades estruturais e ligadas à ocupação e exploração da terra. A consequência óbvia é sentida nas diversas dimensões do racismo, inclusive ambiental e climático, afinal, um dos efeitos da marginalização é a maior exposição desse conjunto da população aos riscos ambientais de ocuparem as áreas mais sujeitas à degradação da natureza, à falta de acesso aos recursos naturais e de infraestrutura, além de mais sujeitas aos eventos climáticos extremos.

Apesar desse histórico, o país assumiu papel importante no debate ambiental global, seja por meio do ativismo de grandes personagens, como Chico Mendes, além da atuação de organizações da sociedade civil e de movimentos sociais. 

De outro lado, no campo institucional, o Brasil sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento, a ECO 92, foi signatário do Protocolo de Kyoto, de 1997 (primeiro tratado internacional com compromissos de redução de emissões de gases do efeito estufa) e desenvolveu importantes políticas que resultaram, na redução recorde do desmatamento da Amazônia, e que culminaram com a Política Nacional sobre Mudança do Clima, de 2009.

Paralelamente a isso, avança a produção de documentos internacionais que relacionam mudanças climáticas e direitos humanos, como a resolução 7/23, de 2008, do Conselho de Direitos Humanos da ONU que deu origem ao Relatório Anual do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos de 2009. Já em 2012, o mesmo Conselho, por meio da Resolução 19/10, estabeleceu mandato para um especialista independente na temática, convertido, em 2015, numa relatoria especial.

O ápice dos esforços foi o Acordo de Paris de 2015. Esse acordo impulsiona a mobilização cidadã em nível global e impacta estratégias da sociedade civil para cobrança de medidas concretas e efetivas para enfrentar o cenário de emergência climática.

A partir desse impulso são fortalecidas e apresentadas diversas ferramentas de cobrança da institucionalidade estatal e do setor privado, especialmente, a partir da vinculação do debate ambiental e climático com os temas dos direitos humanos. Nesse cenário, os litígios climáticos, ações judiciais que abordam normas relacionadas às causas ou impactos das mudanças climáticas ganham força. 

Segundo dados do Guia de Litigância Climática da Conectas Direitos Humanos, Centros de Pesquisas já identificaram 1.200 experiências internacionais de litígio climático. No livro “Litigar a emergência climática”, o autor César Rodríguez Garavito  afirma que, antes de 2015, eram apenas 19 casos climáticos baseados em direitos humanos, entre 2015 e 2021, litigantes apresentaram 148 casos climáticos envolvendo direitos humanos relacionados com as mudanças climáticas com 38 jurisdições nacionais e em 11 instâncias judiciais.

No caso do Brasil, o avanço da litigância climática tem como momento marcante o debate da chamada “Pauta Verde”, no Plenário da Suprema Corte, marcado pelo julgamento de diversas ações que abordaram políticas públicas de proteção e preservação do meio ambiente, entre as quais a ADPF 708 e a ADO 59 que determinaram a reativação do Fundo Clima e do Fundo Amazônia, decididas ainda em 2022, além de ações que suspenderam resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente que poderiam impactar a preservação de áreas de dunas, mangues e restingas, por meio da liberação de empreendimentos sem o devido licenciamento ambiental (ADPFS 747, 748 e 749). 

Sem dúvida alguma, a discussão em torno da ADPF 760 e da ADO 54, concluída já em 2024, sobre  a implementação de políticas para garantir a redução do desmatamento na Amazônia, trouxe importantes contornos  para o papel das instâncias judiciais, uma vez que mensagens importantes foram expressas ao longo do julgamento, apontando a existência de um estado de coisas inconstitucional durante uma gestão federal, apenas superado por meio da assunção de novos compromissos governamentais para superação de críticas apresentadas pelo tribunal. 

Como bem destaca a professora Danielle Moreira, do grupo Juma da PUC/Rio, no podcast “Conexões para convergir”, temos caminhado na direção do fortalecimento da nossa cidadania ambiental e climática e precisamos avançar ainda mais na nossa mobilização para garantir que sejam adotadas as urgentes medidas para enfrentar a emergência climática. 

A litigância climática é uma realidade que deve ser cada vez mais expandida, sendo fundamental que o sistema de justiça esteja mais preparado para a garantia do acesso à prestação jurisdicional efetiva, nesse particular, ainda mais desafiadora, diante do cenário de emergência que vivemos.

Gabriel Sampaio é advogado, diretor da Conectas Direitos Humanos e membro fundador do Centro Soberania e Clima.

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