Coluna

Januária Cristina Alves

Por que a educação é a verdadeira oposição à barbárie

06 de fevereiro de 2025

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Quando debatemos sobre o universo digital estamos falando sobre o nosso presente, mas, sobretudo, estamos pensando os futuros possíveis

As aulas começaram e esse é um dos raros momentos em que a educação está em alta no noticiário brasileiro. E o tema da hora neste ano é a proibição dos celulares nas escolas. Já falei sobre isso aqui na coluna e tenho convidado os leitores a pensarem para além do celular, a enxergarem essa crise como uma oportunidade importante de se colocar em discussão outros temas que não ganham cliques e likes, não geram discussões no almoço de domingo, e, muitas vezes, passam despercebidos até pelas escolas, que,  assoberbadas com tantas demandas e queixas, já não conseguem o tempo necessário para refletir sobre sua função primeira, que é educar para a vida.

Afinal de contas, sobre o que estamos falando quando gastamos horas discutindo os malefícios do celular, o quanto viciam, mesmerizam, automatizam comportamentos, geram depressão, comportamentos destrutivos, estimulam o bullying etc.? Como afirma o professor David Buckingham, uma das maiores referências mundiais em educação para as mídias, em seu mais recente artigo “Devemos proibir celulares na escola?”: “Há, sem dúvida, uma tendência familiar de culpar a mídia por todos os males do mundo – problemas de saúde mental, vício, baixo desempenho educacional, bullying e abuso – e assim por diante”. E, em uma reflexão das mais significativas que vi até aqui, pergunta: “Se as escolas têm boas razões para restringir a utilização de telefones, não haveria outras coisas que deveríamos fazer também? É possível encontrar uma abordagem mais honesta e construtiva, e ainda mais eficaz e valiosa do ponto de vista educacional, do que a simples proibição?”. É sobre isso que, no fundo, precisamos falar. 

A escola continua sendo um lugar de resistência intelectual, no qual é possível, inclusive, educar para que todos sejamos educadores no exercício pleno da nossa humanidade

Na mesma linha de Buckingham, o professor emérito de Ciências da Educação da Universidade de Paris 8, Bernard Charlot, em sua conferência para educadores e gestores escolares no Projeto Devir, em São Paulo, afirmou que o antídoto à barbárie é a educação, deixando claro que é somente por meio dela que nos humanizamos. Para ele, é preciso que compreendamos porque o homem, na condição de espécie, precisa ser educado de uma forma completamente diferente das outras. Pesquisador renomado sobre a relação dos alunos com o saber e com a escola, Charlot afirma em seu livro “Educação ou barbárie? Uma escolha para a sociedade contemporânea” (ed. Cortez): “Eis o ponto-chave: não a tecnologia em si, mas a relação do homem com a tecnologia. Vivemos em um mundo humano tecnológico, é nesse tipo de mundo que a educação convida o jovem a entrar e me parece importante que ele possa compreender os princípios básicos dos objetos tecnológicos que utiliza cotidianamente. (…) Não para acrescentar mais um capítulo ao ensino bancário, nem para preparar um mundo pós-humano, mas para ocupar com humanidade um mundo tecnológico”. Penso que o cerne da questão do uso das telas na escola deve passar por esta reflexão.

Tenho me perguntado se, ao invés de nos debatermos contra ou a favor da proibição do celular no ambiente escolar, não deveríamos estar seriamente preocupados em responder questões como: o que a escola pode ensinar que as crianças e jovens não podem aprender em nenhum outro lugar? Qual é o papel da escola num mundo de livre circulação (cada vez mais livre, diga-se de passagem) de desinformação, teorias conspiratórias, discurso de ódio, ciberbullying? O que é importante ensinar aos nossos filhos no mundo de hoje? Como colocá-los no centro do ensino e da aprendizagem em meio a essa cacofonia que confunde qual o papel dos educadores no contexto que estamos inseridos?

Como bem coloca Charlot em sua obra, o princípio básico da educação contemporânea é “ocupar o mundo com humanidade e se ocupar dele com todas as formas de solidariedade que esse termo implica”. E, nesse sentido, é importante ressaltar que este princípio vai além dos bancos escolares, e precisa nos guiar quando nos perguntamos como educar as novas gerações para enfrentar esses desafios e, sobretudo, para aproveitarem as imensas oportunidades neles embutidas. Para isso, precisamos olhar o ser humano em suas singularidades e necessidades específicas, para além da categorização de idade, raça e gênero. Somos humanos e é para exercer essa humanidade que precisamos educar. Será que não estamos focando no uso excessivo do celular quando deveríamos nos concentrar em entender melhor o que se configura como conexão e desconexão nas nossas relações? Qual seria o propósito desse uso? Mas não apenas do ponto de vista mais previsível do on e offline, mas como nos conectamos verdadeiramente com todos os espaços que habitamos. Em que pese esses ambientes estejam profundamente interligados, ainda há uma zona intermediária aí que precisa ser melhor explorada, para que crianças e adolescentes possam circular entre elas somando experiências, exercendo o seu direito de brincar, aprender e crescer sem tanto monitoramento e pressões complexas, que os estão afetando em demasia, como temos visto.

Nesse sentido, ouvi-los é fundamental. Em uma das muitas rodas de conversas que tenho realizado com crianças e jovens de diversas idades há uma queixa comum: a de que estão sendo vistos como seres governados por algoritmos, sem reflexão sobre as experiências vividas, sem escolha e sem identidade. E isso tem sido nefasto para a formação de pessoas que precisam ser educadas para tomar decisões que vão impactar o fruto delas e de toda a sociedade. Os números e os protocolos – qual a idade certa para se dar o celular para elas, quando poderão acessar as redes sociais, quando poderão ouvir sobre abuso sexual, os perigos da pornografia etc – estão tomando o lugar da escuta ativa, da atenção plena, do acolhimento, das conexões reais, mesmo que mediadas pelos dispositivos. Muitos alunos relatam um desejo genuíno de compartilhar com pais e educadores os vídeos engraçados que veem nas redes sociais, os jogos online que ensinam sobre mitologia ou sobre um mundo distópico, e até aqueles conteúdos que aparecem em suas timelines e não entendem direito sobre o que significam. É sobre cumplicidade e confiança que eles estão falando, sobre presença e participação e não sobre interações e cliques aleatórios. 

Tal como o professor Charlot, acredito que a escola continua sendo um lugar de resistência intelectual, no qual é possível, inclusive, educar para que todos sejamos educadores no exercício pleno da nossa humanidade. Quando debatemos sobre o universo digital estamos falando sobre o nosso presente, mas, sobretudo, estamos pensando os futuros possíveis e, por isso, precisamos aprender a combater a barbárie por meio da criação de vínculos, do exercício da empatia e do apoio mútuo. Educação é diferente de escolaridade e, como tal, ela se realiza em muitos lugares, para além da escola e dos artefatos digitais. Como educar para vida: é sobre isso que devemos nos preocupar. 

 

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Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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