Literatura e Compromisso: de outubro de 2013 a junho de 2016

Ensaio

Literatura e Compromisso: de outubro de 2013 a junho de 2016
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Mário Augusto Medeiros da Silva


23 de julho de 2016

Parece restar, como fazemos agora, opinar e palpitar. Ou, ao menos, não se furtar a escolher um lado, no mundo literário e no mundo social, sob pena de chafurdar na lama da indignidade biográfica

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“Esses escritores que vivem afirmando que a literatura não serve para nada são grandes analistas do próprio trabalho”

(Ricardo Lísias, escritor, em 25 de junho de 2016, na rede social)

Situemos nosso ângulo de observação no Brasil e no não muito distante 8 de outubro de 2013. Ali, polêmicas ganharam as páginas de diferentes jornais nacionais e estrangeiros, em função do conteúdo do discurso enunciado pelo escritor Luiz Ruffato na Feira Literária de Frankfurt, em que o Brasil foi o homenageado . Vale notar que, na primeira fila, diante do púlpito de onde ele iniciaria sua controvérsia, estavam sentados o então vice-presidente da República, Michel Temer, acompanhado da então ministra da Cultura, Marta Suplicy. Ambos, atores no mínimo interessantes dos nossos dias correntes.

O constrangimento causado por Ruffato tornou-se notório. Ele deveria fazer um balanço da vida literária brasileira e enunciar sua pujança. Festejar e ratificar uma imagem idealmente construída ao mundo, também pelo governo do PT, de que, finalmente, estávamos bem. Especialmente para um público estrangeiro e seus pares nacionais composto por editores, escritores, críticos, intelectuais e políticos. Subindo ao púlpito, leu um texto em que afirmava o compromisso da literatura e do escritor com a arte, mas também com a realidade social de onde ela parte e/ou que seu escritor, pelo menos como cidadão, não pode ignorar. Não esquecia sermos fruto do genocídio, do estupro coletivo e de iniquidades cotidianas cometidas contra negros, mulheres, gays, índios, pobres, deficientes, os velhos novos “condenados da terra”. Assumindo posição, disse em alto e bom som: “[…] escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias.”

Entre aplausos efusivos dos estrangeiros, o operador da câmera focou, por alguns segundos, o riso amarelo e as palmas protocolares de Temer e Suplicy. A reação dos colegas escritores presentes também se dividiu. Alguns, como Ziraldo, afirmaram que não deveria ser aplaudido um discurso que continha dados sociológicos sobre o Brasil encontrados facilmente no Google. “Não tem que aplaudir! Que se mude do Brasil, então”. Outros, como Nélida Piñon, afirmaram ser uma postura complicada criticar o país num espaço estrangeiro. E houve quem, como Paulo Lins, defendesse a postura de Ruffato: “Ele fez o que deveria ser feito, só agiu com honestidade e coragem”, disse Paulo Lins. “Mas há gente que quer esconder uma realidade que não pode e não deve mais ser escondida.” Em outro jornal, Lins afirmaria : “Ruffato me representa e esse discurso talvez seja a melhor coisa que venha a acontecer nessa feira”.

Numa entrevista, repercutindo a situação, Ruffato revelou que, entre outras reações, “teve escritor brasileiro dizendo em rede social: ‘É isso que dá deixar o filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira falar em nome do Brasil’”. Reflitamos. Extrapolando o projeto intelectual deste escritor surgido no começo dos anos 2000 (narrar os invisíveis da sociedade: negros, trabalhadores, migrantes, classe média baixa, etc.) e também deixando de lado sua trajetória pessoal, teremos, sociologicamente, a passagem de personagem a autor corporificada. E uma passagem que não esquece os dilemas da trajetória, tampouco os passivos sociais existentes pelo caminho. Uma passagem que não se quer herói solitário, mas sobretudo um agente plural.

O esforço de alargamento dos direitos do mundo social brasileiro, portanto, não esteve descolado como projeto das tentativas de expansão desses mesmos direitos enquanto presença no mundo artístico e científico

O ano de 2013 foi, em diferentes dimensões, um começo de acerto de contas e de balanço com um presente próximo. Conectando junho daquele ano, com os protestos de rua, a outubro do mesmo, com o discurso da Feira de Frankfurt, algo estava sendo dito, pública e amargamente, a uma curta experiência de onze primaveras da história social brasileira recente acerca de direitos e cidadania, da necessidade de compromissos efetivos com as camadas sociais mais pobres. E também sobre as dificuldades e perigos da conciliação política, face àquele passivo da história. É um balanço ainda a ser realizado de modo mais apurado e que nos alcança, com seus efeitos, neste junho de 2016. Ao menos um século de luta social dos condenados da terra brasileira está em jogo, condensada por quase quatro décadas de organicidade partidária, volatilizada por meses de ataques sistemáticos, condensados no golpe de maio último.

Se Ruffato, o filho do pipoqueiro e da lavadeira, bem como Lins, o filho de migrantes e flagelados, concordavam e vinham dizendo algo incômodo sobre a sociedade brasileira, sem dever favores a ninguém, também o faziam para não serem lembrados como gênios da raça ou exceções, que só costumam confirmar a regra. Os esforços de expansão dos direitos, também em termos de cidadania na vida literária, acompanham a tentativa de alargamento dos direitos na vida social? Penso que sim. E ambos passaram a estar sob ameaça na conjuntura atual, mas igualmente já vinham abalados pelos anos anteriores.

Alguns exemplos, que merecem estudos específicos. A Fundação Biblioteca Nacional (FBN), no mesmo ano de 2013, publicou os chamados “Editais de Cultura Negra”, como os de Apoio à Co-edição de livros de Autores Negros e de Apoio a Pesquisadores Negros . Vale lembrar que eles foram interditados por meses, por decisão judicial, pelo entendimento de que haveria discriminação em alocar recursos públicos da Fundação para editais específicos destinados a um setor particular da sociedade. Depois de meses de batalha processual, esses editais foram liberados apenas em 2014.

Graças a isso, por exemplo, pôde-se ter em 2015 uma das ganhadoras do Prêmio Jabuti, na categoria contos, a escritora negra Conceição Evaristo, com a obra “Olhos d’água”, publicada pela Pallas Editora em parceria com a FBN e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial ( Seppir ). E também um conjunto de doutores e mestres negros tiveram subsídios para desenvolver pesquisas com potencial de artigos ou livros. Algo semelhante se passou com a Funarte e as bolsas de Fomento a Artistas e Produtores Negros, em termos de possibilidades e questionamentos. E também com a Fundação Palmares e a edição de prêmios para teses e dissertações sobre a cultura negra.

Funarte, Palmares e FBN estavam subsumidas ao antigo MinC. A Seppir, como o Ministério da Cultura, foi extinta /incorporada em outra instância governamental num dos primeiros atos do governo “interino”: a Medida Provisória n. 726 de 12 de maio de 2016. As representações estaduais da Funarte e do MinC estão ocupadas desde então, com atenção especial para a Funarte de SP, que acrescenta o corte étnico como característica dessa atividade de resistência política, na Ocupação Preta da Funarte .

estamos falando de algo como uma “atmosfera propícia”, “condições sociais de produção”, contexto intelectual para ideias arejadas e espaço político para disputas

O esforço de alargamento dos direitos do mundo social brasileiro, portanto, não esteve descolado como projeto das tentativas de expansão desses mesmos direitos enquanto presença no mundo artístico e científico. Isso não deve ser menosprezado, especialmente pelo sentido histórico e social que explicita, dada nossa experiência coletiva de séculos. O que significa um Prêmio Jabuti para uma romancista e contista negra? O que expressa fomento à pesquisa para mestres e doutores negros, conhecidas nossas histórias literária e científica nacionais? O que proporcionam linhas de fomento à produção cinematográfica negra no Brasil? Feitas as contas, o que tudo isto simboliza? É possível dizer que a existência federal dos Editais de Fomento esteve atrelada a um projeto de Estado, vislumbrando o esforço de combate às exceções que confirmam regras. Insuficientes, é verdade, haja vista os eventos de 2013. Mas importantes, bem como outras ações da estratégia cultural montada desde 2002, dada a falta que nos fazem agora, em 2016.

Esta ausência, no âmbito da Literatura, fez-se sentir, por exemplo, na publicação do “Manifesto dos Escritores e Profissionais do Livro pela Democracia”, articulado desde o fim de 2015, ganhando maior fôlego em março deste ano. Contando em fins de junho com 8.933 assinaturas, ele expressa a visão dos subscreventes que produzem, publicam e fazem circular livros no Brasil. De escritores a editores, de artistas gráficos a revisores, de operários da manufatura do livro e contadores de histórias a donos de sebos, professores, livreiros, bibliotecários, intelectuais, leitores: uma república das letras, de maneira ampla e democrática, que expressa-se indignadamente face à crise política agudizada em maio de 2016.

Acredito não ser exagerado pensar que as circunstâncias sociais engendradas, por quase uma década e meia, por um governo comprometido, não só no discurso mas também em aspectos práticos e estratégicos (ainda que nem sempre radicalmente), com a democratização da cultura tiveram impactos para a ampliação dos direitos de existência, presença, crítica e reivindicação de antigos sujeitos subalternizados na cena literária e na vida social. Os escritores marginais-periféricos, os saraus das periferias urbanas, iniciados em São Paulo, nada têm a dever em termos de favor ao governo do PT. Contudo, estamos falando de algo como uma “atmosfera propícia”, “condições sociais de produção”, contexto intelectual para ideias arejadas e espaço político para disputas. Isso também não é pouca coisa. E eles igualmente não se calaram.

Com críticas aos anos de governo do PT, até o dia 26 de abril de 2016, mais de 520 coletivos e 2.400 cidadãos, movimentos e organizações, capitaneados majoritariamente por saraus, artistas, escritores, grupos de teatro, coletivos de cinema e ação cultural da periferia subscreviam o texto de 24 de março de 2016, lançado no Sarau do Binho, em Taboão da Serra, o “ Manifesto das Periferias contra o Golpe ”, dizendo com voz forte, entre outras passagens : “[…] Nós, que sabemos que a democracia real será efetiva apenas com a ampliação de direitos e conquistas de nosso povo preto, periférico e pobre, a partir da esquerda e de baixo pra cima.[…] Não vai ter golpe. Não vai ter luto. Haverá luta!”

Impossível não sorrir ao lembrar que este texto foi lançado e publicado dias antes do “Manifesto pró-impeachment”, financiado pela Fiesp, editado nos jornais “Folha de S.Paulo” e “O Estado de São Paulo”, ocupando 14 páginas ou mais em rodapé amarelo com a frase “Impeachment Já – Chega de Pagar o Pato”, com um ridículo simulacro amarelo da ave de borracha, enfeite símbolo do prédio da Fiesp e do movimento conservador na Avenida Paulista, assinado por algo em torno de 500 associações empresariais. Reagindo a uma enquete da mesma “Folha”, o crítico e sociólogo Roberto Schwarz respondia “indiretamente”, como ele mesmo dizia, analisando o “tom de quem manda, da casa-grande”, de um lado e doutro, “a fração esclarecida e auto-organizada do povão”: “É claro que o Brasil não se resume a esta oposição. Entretanto ela dá o que pensar”.

As oposições entre casa-grande e senzala, a luta de classes entre quem se acostumou privilegiadamente a mandar e quem historicamente se nega a obedecer não poderiam estar mais claras, mesmo que baralhadas pelo cenário atual. O drama parece tão inverossímil que fez o recluso escritor Raduan Nassar, antes de ser galardoado com o Prêmio Camões, sair de seu refúgio, discursar, escrever notas públicas e defender, entre março e abril, a democracia ! Sobre tudo isso, bem como sobre o momento social, parece restar, como fazemos agora, opinar e palpitar. Ou, ao menos, não se furtar a escolher um lado, no mundo literário e no mundo social, sob pena de chafurdar na lama da indignidade biográfica.

Mário Augusto Medeiros da Silvaé docente do departamento de Sociologia – IFCH/Unicamp. Texto originalmente lido para a mesa “Literatura sob Ameaça” no evento Cultura sob Ameaça, organizado pelos professores  Mário Medeiros e Michel Nicolau  (IFCH) e Cacá Machado (IA-Unicamp), ocorrido entre os dias 28 e 30 de junho de 2016, no auditório da Adunicamp, na Universidade Estadual de Campinas. Agradecimentos a Ricado Teperman e Paula Miraglia pelo interesse e incentivo à publicação.

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