“Sol, a culpa deve ser do sol que bate na moleira, o sol que estoura as veias, o suor que embaça os olhos e a razão”, especula Chico Buarque a respeito de um episódio de racismo em Copacabana, em sua recente composição “As Caravanas”.
É dia de calor e jovens negros de periferias do Rio de Janeiro – do Parque Arará, Jardim Caxangá, do Complexo da Maré – se dirigem à praia. Mas aquele que deveria que ser “um dia de real grandeza, tudo azul”, logo se transforma num negro drama. A “gente ordeira e virtuosa” da Zona Sul carioca, entre o desejo sensual, o medo e a rejeição social aos corpos daqueles “estranhos suburbanos”, não vê outra saída senão apelar “pra polícia despachar de volta o populacho pra favela, ou pra Benguela, ou pra Guiné”.
A história cantada (fictícia, claro, mas de teor quase documental) faz referência ao personagem Meursault, o anti-herói de “O estrangeiro”, romance de Albert Camus publicado em 1942. Na trama, após disparar cinco tiros contra um jovem árabe numa praia da Argélia, o colono francês credita ao forte calor a responsabilidade pelo assassinato. “Foi por causa do sol”, diz em seu julgamento, sem sinal de remorso. A inspiração para o drama narrado na música contudo, vai além das circunstâncias do crime que marcou a literatura francófona e mesmo mundial. É antes matéria da realidade brasileira mais cotidiana, tão repetida na vida, que todos conhecemos seu desfecho na canção: os jovens “da caravana do Irajá, do comboio da Penha”, como o árabe anônimo do livro de Camus, encontram na praia outro tipo de interrupção às suas vidas. Aos gritos de “tem que bater!”, “tem que matar!”, a polícia leva os “muçulmanos do Jacarezinho”, como Chico os apelida, dali para a penitenciária, abarrotando-os em celas que lembram “crioulos empilhados no porão de caravelas no alto mar”. Na música, o mau encontro descrito na letra e embalado pela releitura de “Caravan”, composição do afro-americano Duke Ellington gravada em 1936, é contrastado, na melodia, ao ótimo encontro que o arranjo do maestro Luiz Cláudio Ramos promove entre uma orquestra de violinos e o beatbox funkeiro do rapper Rafael Mike. Como a nos recordar que, no Brasil, a mistura de culturas e cores – orgulho de um país que gosta de se dizer mestiço – sempre veio acompanhada de exclusão e violência.
Cruzando tempos, espaços e contextos, a composição nos convida a refletir sobre um dado evidente, mas não por isso menos incômodo: que o nosso presente racista e desigual carrega muito de nosso passado escravocrata. A comparação entre os antigos porões dos navios negreiros com os atuais presídios lotados, bem como as rimas entre “favela” e “Maré” com “Benguela” e “Guiné” – dois importantes portos africanos na rota do tráfico de escravizados para o Brasil –, são exemplares nesse sentido. Tratam bem como a escravidão, mesmo extinta, se fez reinventar por aqui em novas práticas sociais e retóricas políticas, espraiando seus efeitos em todo o corpo social por meio da linguagem do racismo.
O desafio mais urgente para a maioria da população negra brasileira continua sendo o de manter-se livre e viva
Os versos apontam igualmente para dois temas que têm norteado preocupações do movimento negro no país, e devem ocupar a centralidade de suas ações nesse ano que se inicia: as altas taxas de mortalidade e o encarceramento em massa da juventude negra. Fenômenos da atualidade cujas raízes, contudo, são mais profundas.
Vestígios de estranha civilização
Esse passado nem é assim tão distante: neste ano de 2018, completam-se (apenas) 130 anos da abolição formal da escravatura no Brasil. Tempo curto, ao menos se comparado aos quase quatro séculos de duração do regime servil entre nós. Último país das Américas a pôr fim ao cativeiro, esse processo ainda se deu de modo incompleto: sem adoção de políticas públicas efetivas que promovessem a inserção social e econômica dos ex-escravizados, a nascente República brasileira que surgia em 1889, um ano após a Lei Áurea, relegou grande parte da população negra à subcidadania, pobreza e marginalidade. Corrido mais de um século, nossa sociedade ainda é regida por uma profunda desigualdade entre brancos e negros. Os dados são expressivos e não nos permitem desviar da centralidade da questão: a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. A maioria das vítimas são jovens entre 15 e 29 anos, do sexo masculino e com baixa escolaridade.
É notório, e ao mesmo tempo pouco comentado, como se está praticando um verdadeiro genocídio de uma geração de afrodescendentes. Num ano turbulento como 2018 promete ser, com eleições à vista e marcado por profunda crise econômica e política – terreno fértil para o acirramento de conflitos sociais e a disseminação de discursos de ódio –, o desafio mais urgente para a maioria da população negra brasileira continua sendo o de manter-se livre e viva. As múltiplas frentes de atuação dos movimentos negros – o crescente ativismo da população negra LGBT, dos movimentos de valorização cultural afro-brasileira, do feminismo negro, de respeito às religiões de matriz africana, para citar apenas algumas –, são unânimes nesse diagnóstico. E vêm há anos sublinhando que a evidente seletividade penal em curso no país é uma ferida aberta fruto do racismo. Um racismo à brasileira, por certo, que se manifesta em relações interpessoais – o medo branco ante a “caravana” de jovens negros na praia –, mas que também se faz revelar em ações institucionais – a polícia que, sem investigar, anula a presunção de inocência desses sujeitos, encarcerando-os em primeiro lugar pelo fato de serem o que são: jovens, negros, pobres. Não raras vezes, sem direito a audiências de custódia ou ao devido processo penal.
O racismo no Brasil é estrutural precisamente por esse motivo: por articular várias gradações de violência em suas expressões, das mais dissimuladas (todos conhecemos a infame “isso é coisa de preto”, piada que não faz ninguém rir) às mais extremas, como a mortandade e o aprisionamento discricionários, embaçando olhos e razão para que esses atos pareçam menores ou circunstanciais. Não são. E estão no centro do debate sobre a fragilidade republicana que assola as instituições de nosso país.
É preciso então levar a sério que essa não é apenas uma “questão racial”, como se costuma dizer. Trata-se, pois, de um problema nacional, dada a abrangência de sua manifestação em todas as regiões do país – como se não bastasse o fato de 54% da população brasileira autodeclarar-se negra (pardos e pretos). Não se pode, portanto, falar seriamente em defesa da democracia sem levar em conta o enfrentamento real às políticas de extermínio da juventude negra.
Enquanto os alvos da violência policial e do acesso desigual a direitos e bens públicos tiverem cor pré-definida, o sonho de uma nação democrática continuará adiado e incompleto
Os acontecimentos que abriram o temeroso ano de 2018 comprovam o caráter emergencial do tema: os massacres ocorridos no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, que resultaram na fuga de uma centena de detentos, a morte de nove e ferimento de outros 14, ecoam os eventos que inauguraram o triste ano de 2017, com a morte de mais de 130 pessoas em penitenciárias do Norte e Nordeste do país, também nos primeiros dias do novo ano. Dados atualizados do Infopen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) demonstram que esse é mesmo um cenário persistente: terceiro país com maior número de detentos no mundo, 64% da população carcerária do Brasil é negra e mais da metade dos presidiários têm entre 18 e 29 anos. Ainda, 40% são presos provisórios, encarcerados sem condenação judicial. Tal e qual os personagens de “As Caravanas”, os suspeitos de primeira ordem da vida real são pessoas com cor, idade e origem bem definidas.
O mesmo relatório do Infopen, divulgado em dezem bro de 2017, informa que os crimes ligados ao tráfico de drogas são a principal causa de encarceramento no país; a maioria das pessoas presas, contudo, são peixes-pequenos da malha do tráfico, enquanto os grandes responsáveis seguem impunes. Outros dados vêm confirmar a assimetria: as chances de um jovem negro ser assassinado no Brasil são três vezes maior do que a de brancos, segundo o Atlas da Violência de 2017 ;por outro lado, negros correspondem a 70,8% das pessoas em situação de extrema pobreza no país, conforme relatório de 2016 da ONU. Evidências de como nossas desigualdades raciais são tanto produto quanto produtoras de nossas desigualdades sociais e econômicas. E não há peneira que dê conta de tapar esse sol ou de mascarar essa realidade: só não vê quem não quer que a pobreza e má distribuição de renda no Brasil nunca foram só uma questão de classe. Há, com mesma força, componentes raciais, etários, de gênero e origem nessa equação.
Outra realidade menos morta
As eleições de 2018 são obviamente um horizonte relevante para todo movimento de reivindicação de direitos e de justiça social; mas não o único. O combate ao racismo exige engajamento e vigilância cidadãs contínuos, para além dos resultados do pleito de outubro. As contradições desse ano, porém, nos reservam uma oportunidade ímpar. Diante de um cenário de ameaça e confisco de direitos, com índices alarmantes de desemprego e crescente precarização do trabalho – que só tende a acelerar-se com a aprovação da reforma trabalhista do governo Michel Temer, afetando principalmente a população pobre, majoritariamente negra –, elegeremos presidente, deputada(o)s, senadora(e)s e governadora(e)s.
É preciso, portanto, colocar os pingos nos is e fazer as já inadiáveis perguntas: quais projetos políticos trazem propostas efetivas que ponham fim à vergonhosa taxa de assassinato de um jovem negro a cada 23 minutos no Brasil? Que levam a sério a improrrogável reestruturação da polícia, que implica não só em sua desmilitarização, mas também na qualificação salarial, plano de carreira e formação dos oficiais e policiais de base? Quais visam assegurar a integridade do Estatuto do Desarmamento, em risco iminente? Quais estão comprometidos com um real combate ao tráfico de drogas, que passa pela legalização do uso e regulamentação da produção, venda e consumo, mas também pela implantação de políticas públicas de cuidado e redução de danos nos casos de dependência, tratando o tema pelo que ele é: um caso de saúde pública, não de polícia? Quais tomam a equidade racial e de gênero como guia na composição de secretarias e ministérios, bem como na própria estrutura partidária?
Essas questões estão longe de esgotar o repertório de reivindicações dos movimentos antirracistas. Compõem, contudo, temas centrais no agenda política do país e desafios urgentes a toda sociedade brasileira. Enquanto os alvos da violência policial e do acesso desigual a direitos e bens públicos tiverem cor pré-definida, o sonho de uma nação democrática continuará adiado e incompleto. É preciso dar-se conta disso. Precisamos, negros e brancos, enfrentar esse problema tão antigo quanto atual; não sofrer na pele as dores do racismo não exime ninguém do compromisso com a pauta. É preciso reconhecer a própria responsabilidade – individual e coletiva – na perpetuação dessas estatísticas.
“Não há gente tão insana”, Chico Buarque afirma ao final da canção, referindo-se àqueles que, tomados pela raiva e covardia, apoiam ou se calam diante da ação policial. Sabemos, porém, que a prática ou conivência com o racismo não decorrem da loucura ou irrazão; são parte de uma lógica de funcionamento social que tem de ser revista e interrompida. Afinal, num país em que 91% da população admite a existência do racismo, mas só 3% se assume racista (segundo pesquisa do Datafolha, de 2008), – a velha e insustentável máxima do “pratico, não admito, atribuo ao outro quando puder”– a culpa não é nem jamais poderia ser do sol. Como diria a filósofa Estamira Gomes de Sousa, com a lucidez que lhe era própria, marcada pelo diagnóstico da loucura e pelo trabalho exaustivo catando lixo sob o sol igualmente forte que bate no aterro sanitário de Jardim Gramacho, a 30km de Copacabana: “a culpa é do hipócrita, mentiroso, esperto ao contrário que joga a pedra e esconde a mão”.
Hélio Menezes é graduado em relações internacionais e em ciências sociais pela Universidade de São Paulo. Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, é pesquisador do Núcleo de Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS) e do Núcleo Etno-história.