Por volta de 1630, frei Vicente do Salvador, um franciscano que se tornou nosso primeiro historiador, terminava o argumento de “ Historia do Brazil ”. No texto, hoje bem conhecido, fazia uma reflexão política sobre o futuro da colônia, sob a ótica do interesse da metrópole. Página por página, “Historia do Brazil” abre espaço para diversas possibilidades de leitura, entre as quais o prenúncio das críticas a um projeto de colonização que tinha por objetivo central recolher da colônia tudo o que na Europa pudesse alcançar algum valor. O sonho português de viver do trabalho alheio precisava de ajustes, pensava frei Vicente, e estaria condenado ao malogro caso não passasse de um sistema de povoamento concentrado em desfrutar as riquezas do território colonial para deixá-lo em seguida destruído.
A pergunta que frei Vicente se fazia a todo instante é surpreendentemente atual: como pôr em prática no território da colônia a ideia de zelo pelo bem comum, isto é, o cuidado pelo patrimônio coletivo de seus habitantes? Vista do ângulo de Portugal, essa pergunta assumia uma importância estratégica, e “Historia do Brazil” defende a tese de que não é possível evitar que os indivíduos sigam exclusivamente seus próprios interesses egoístas se no caminho deles só existe um projeto de colonização de natureza predatória: “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nela zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”, afirmou. Ainda era só uma palavra, mas “República” acabava de desembarcar nas terras recém-tocadas que seriam, um dia, o Brasil. Era uma maneira de qualificar a administração que está a serviço do interesse de todos e não se confunde com as diversas manifestações da vida particular dos indivíduos, e seu desembarque vinha registrado pela letra redonda e elegante de quem andava sustentando havia anos uma opinião afiada sobre o assunto.
A linguagem republicana firmou-se entre nós para enfrentar situações de crise — surge e reaparece quando não encontramos mais no passado uma sequência tranquilizadora de eventos, e o futuro segue imprevisível.
E a história mal começara. A certa altura do final do século 17, entrou em ação outro religioso dessa vez um jesuíta, padre Antônio Vieira, que acompanhava de perto as contradições do projeto colonial português, e não se furtava a executar prédicas audaciosas sobre o assunto. Em uma dessas prédicas, “Sermão da visitação de Nossa Senhora”, padre Vieira passou a limpo o programa de Lisboa para a gestão do ultramar, além de condenar publicamente um modo de governar que alavancava um magote de funcionários vorazes cuja prática administrativa corrompiapor dentro a colônia: “Esta é a causa original das doenças do Brasil”, investiu Vieira, do púlpito do Hospital da Misericórdia da Bahia, na ocasião em que chegou àquela cidade o marquês de Montalvão, governador-geral e vice-rei: “Tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências particulares. Perde-se o Brasil, senhor, porque alguns ministros de sua majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm cá buscar nossos bens […]. Esse tomar o alheio é a origem da doença: toma nessa terra o ministro da Justiça? Sim, toma. Toma o ministro da Fazenda? Sim, toma. Toma o ministro da República? Sim, toma. Toma o ministro da Milícia? Sim, toma. Toma o ministro do Estado? Sim, toma […]. Muitos transes destes tens padecido, desgraçado Brasil, muitos te desfizeram para se fazerem, muitos edificam palácios com os pedaços de tuas ruínas, muitos comem o seu pão com o suor do teu rosto. Eles ricos, tu pobre; eles salvos, tu em perigo”. O Brasil dá, Portugal o leva, trovejava padre Vieira, em Salvador. No século 17 português, as pessoas conheciam e usavam a palavra “República”, mas não havia, no Brasil, abrigo para repúblicos — e bem público era algo a ser pilhado.
Mas a história ainda tem enredo. Por volta de 1675, diante das dificuldades em liquidar, de uma vez por todas, o foco permanente de insurgência representado pelos quilombos dos Palmares, o governador da capitania de Pernambuco Pedro de Almeida encomendou um longo relatório que investigasse o que exatamente estava acontecendo e apreendesse o significado daquilo. Na descrição do relatório, Palmares não foi só um quilombo, como os demais. Havia ali “todos os arremedos de qualquer República”, anotou o autor. Não sabemos se D. Pedro de Almeida tinha conhecimento das formas de organização e convivência política nos diversos estados africanos; mas a visão de uma “República” era algo que o governador compreendia e sabia manejar, e sua atualização em Palmares pode ter servido de parâmetro para interpretar e dar sentido a um acontecimento político que lhe pareceu desnorteante. O governador identificava em Palmares uma experiência republicana que não se definia pela forma de governo: era uma comunidade autogovernada, com seu próprio edifício institucional, um referencial coletivo de interesses e algum partilhamento de princípios norteadores da vida em comum — e, justiça lhe seja feita, até hoje esses atributos definem a República em sua generalidade.
Naturalmente, os três personagens não podiam adivinhar o futuro. Mas, convenhamos: a questão que eles levantam merece ser considerada; afinal, há muito ela domina a imaginação política do Brasil. Nos quatro séculos que nos separam de frei Vicente do Salvador, padre Antônio Vieira e do governador Pedro de Almeida, permanece renitente a evidência de que chamamos por República um esboço que não encontrou forma. E a implacável normalidade com que os brasileiros convivem hoje com a natureza redutora e deficitária de sua República fica ainda mais reveladora quando compartilhamos, no presente, o sentimento da crise e da incerteza política, e experimentamos a estranha sensação de que o tempo cronológico está girando fora dos eixos.
É principalmente para o século 18 que devemos nos voltar se queremos reencontrar a trilha de como a palavra “República” chegou até nós, embarcada em Portugal — servia para designar a gestão administrativa exercida pelas Câmaras Municipais. Ao final desse século, “República” havia se tornado uma palavra importante e significativa para os habitantes da Colônia, capaz de revelar o que aquelas pessoas pensavam a respeito do que estavam fazendo e sobre os valores e expectativas que compartilhavam em seu comportamento público. Era uma palavra que suscitava grandes esperanças no Brasil e seu enraizamento no território colonial constitui uma narrativa rica, agitada e repleta de peripécias que culmina em quatro momentos fortes da nossa história política — as Conjurações ocorridas nas Minas, no Rio de Janeiro e em Salvador durante as últimas décadas do século 18 e a Revolução de 1817, em Pernambuco.
Ao final da história, porém, algo soa esquisito, quase melancólico: no Brasil, a tradição republicana emergiu e se perdeu entre o remoto século 18 e nossos assuntos contemporâneos. Como pode uma tradição acabar sendo esquecida? Como foi que ela desapareceu quase sem deixar vestígio? Por mais que a palavra “República” tenha se transmitido ao longo do tempo a partir de 1889, e por mais que ela tenha sido fielmente preservada na história brasileira desde então até se desgastar em um chavão desimportante, os republicanos do final do século 19 acabaram por eliminar dela toda a experiência política anterior que não pudesse se encaixar nos parâmetros da República que haviam proclamado — e que se revelou uma forma de governo oligárquica, excludente e sem nenhuma sensibilidade para a questão social.
A linguagem republicana firmou-se entre nós para enfrentar situações de crise — surge e reaparece quando não encontramos mais no passado uma sequência tranquilizadora de eventos, e o futuro segue imprevisível. O Brasil vive hoje uma crise talvez sem precedentes na sua história. É um bom momento para contar e recontar a estranha história do espólio republicano que nos pertence de direito, reacendendo no presente algo da antiga chama de uma tradição esquecida. Afinal, contar histórias serve principalmente para isso: chamar de volta à imaginação não só algo que aconteceu alguma vez e partiu, mas um pouco daquilo que ocorreu no passado, ainda está aqui, entre nós, e prossegue no futuro. E, como se sabe, toda história começa com uma pergunta: o que era ser republicano no Brasil colônia?
Heloisa Starling é historiadora e cientista política. É professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais e autora de livros como “Lembranças do Brasil” (1999), “Brasil: uma biografia” (2015), com Lilia Moritz Schwarcz. Ela lança em junho de 2018 “Ser republicano no Brasil colônia”.