A gripe espanhola e o desarranjo social no início do século 20

Ensaio

A gripe espanhola e o desarranjo social no início do século 20
Foto: Edward A. "Doc" Rogers/Oakland Public Library

Wagner G. Barreira


21 de março de 2020

Pandemias vão e vêm. Assim como é certo que o coronavírus vai se aquietar em algum momento, também é garantido que uma nova doença para a qual não temos anticorpos surgirá no futuro

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Em janeiro de 2020, Japão e Coreia relatavam os primeiros casos de infecção pelo novo coronavírus fora da China. Cento e um anos antes, em janeiro de 1919, morria a vítima mais ilustre da gripe espanhola no Brasil, o presidente eleito Rodrigues Alves.

A espanhola, ou catarro russo, mal das trincheiras, febre de três dias, “Maria Inácia”, apareceu na Europa já no fim da Primeira Guerra. Em alguns meses, transformou-se em pandemia, em uma época em que os deslocamentos eram feitos em navios e uma viagem transatlântica demorava 15 dias, não algumas horas como hoje. Era uma variante do H1N1 — que deu as caras pela última vez no planeta em 2009 ­—, 25 vezes mais poderosa que as gripes comuns. Os cálculos sobre a mortalidade são imprecisos, algo entre 20 milhões a 100 milhões de pessoas. As estatísticas, especialmente na Ásia e em países subdesenvolvidos, não permitem dar números claros à catástrofe.

A pandemia do século passado foi estranha para os padrões epidemiológicos por duas razões:

A primeira em razão de sua taxa de letalidade, que, de acordo com a faixa etária, tinha a forma de um W: vitimou crianças abaixo de cinco anos e a população idosa, algo costumeiro, mas foi especialmente mortífera para a população entre 20 e 40 anos, a parcela mais saudável da população.

Em segundo lugar, depois de uma primeira onda, na qual os sintomas eram equivalentes a uma gripe forte, com baixa letalidade, duas novas levas do vírus — que ressurgiu depois de uma estranha calma epidemiológica de dois meses em que praticamente desapareceu — tiveram efeitos colossais e mortíferos.

As recomendações das autoridades da época soam estranhamente familiares para quem testemunha a pandemia atual: evitar aglomerações, visitas desnecessárias e atividades físicas intensas – e isolamento em caso de suspeita de contágio

Os sintomas eram febre muito alta, dores severas por todo o corpo, que impediam o movimento, e grave dificuldade respiratória. Em poucos dias, os pulmões se enchiam de líquido, comprometendo a circulação sanguínea (daí que os doentes ficassem com a pele escura, pela falta de oxigênio na pele, e morressem afogados, sem conseguir aspirar). A taxa de letalidade foi de 2,5% dos atingidos — abaixo dos 3,4% do coronavírus atual. Em comum, as duas pandemias têm a alta velocidade de transmissão e os efeitos globais.

Epidemias de gripe são relativamente comuns na história da humanidade. Há relatos da doença na Europa a partir de 1580. Em 1742, uma delas batizou a doença em inglês, “influenza”, derivada da expressão “influenza di freddo” , influência do frio, em italiano. Novas levas vieram em 1782 e 1799. No século 19 foram pelo menos quatro grandes epidemias. A de 1889, originária da Ásia, passou pelo atual Irã e Rússia, invadiu a Europa e, de lá, seguiu para a América e para a África — só a Austrália foi poupada. O padrão se repetiu no século passado. Depois da espanhola, houve um brote em 1957 de H1N1, chamado de gripe suína. Nos anos 2000, o espaço entre as epidemias diminuiu: Sars (2002 e 2004), H1N1 (2009) e Mers (2012).

A gripe espanhola chegou ao Brasil no vapor Demerara, que passou por Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos despejando imigrantes, antes de seguir para o Uruguai e a Argentina em 1918. No Rio de Janeiro, ganhou o apelido de puxa-puxa. Matou 35 mil pessoas no país, mas fora dos grandes centros as notificações são totalmente inconfiáveis. As recomendações das autoridades da época soam estranhamente familiares para quem testemunha a pandemia atual: evitar aglomerações, visitas desnecessárias e atividades físicas intensas – e repouso e isolamento em caso de suspeita de contágio. Médicos só deveriam ser chamados para casos graves. No lugar do álcool gel, vaselina mentolada e infusões com folhas de goiabeira. O desarranjo social também foi parecido, com cancelamento de atividades públicas, cinemas e teatros fechados. A atividade econômica ficou paralisada, mas os dados não aparecem nas planilhas de Produto Interno Bruto de 1918 e 1919.

Apesar das restrições, a epidemia prosperou. Em Curitiba, então com 78 mil habitantes, o contágio chegou a 45 mil pessoas, com uma taxa de letalidade de 0,84% da população nos três últimos meses de 1918. Os hospitais não deram conta da quantidade de doentes e os próprios médicos, contaminados, tiveram de abandonar o trabalho por causa da doença. Em poucos meses, não havia caixões para transportar os mortos e em algumas localidades se praticou uma estranha reciclagem de “paletós de madeira”. Logo faltaram coveiros. No Rio de Janeiro, a polícia podia requisitar quem encontrasse pelas cidade, quase deserta, para fazer o trabalho. Em São Paulo, prisioneiros foram convocados para recolher corpos pelas ruas — com o colapso do serviço funerário, famílias tiravam os mortos de dentro de casa e os deixavam na calçada. Enterros não eram públicos e muitos corpos foram para valas comuns.

O serviço público deixou de funcionar nas grandes cidades, o comércio fechou e as lojas que se mantiveram abertas logo ficaram sem mercadorias. Igrejas cancelaram missas, jornais não circulavam por falta de funcionários, assim como os serviços de transporte coletivo. Havia problemas logísticos de distribuição de comida e instituições beneficentes organizavam a “sopa dos pobres” para alimentar doentes. São conhecidos casos de morte por inanição de famílias inteiras, que não foram socorridas por vizinhos por medo do contágio, assim como suicídios associados à epidemia. Não custa lembrar: o cenário da gripe espanhola no Brasil era o de um país sem saneamento básico e água encanada para a maioria da população, de casas sem geladeira para conservar alimentos, de hospitais pouco aparelhados para atender doentes com insuficiência respiratória.

Pandemias vão e vêm. Assim como é certo que o coronavírus vai se aquietar em algum momento, também é garantido que uma nova doença para a qual não temos anticorpos surgirá no futuro. Albert Camus, autor do hoje tão lembrado “A peste”, tem uma frase muito realista em seu livro, que trata de uma epidemia de peste bubônica em Orã, na Argélia: “Sei, de ciência certa, que cada um traz em si a peste, porque ninguém no mundo está isento dela”.

Wagner G. Barreira é jornalista, autor de “Lampião e Maria Bonita – uma história de amor e balas” (Ed. Planeta, 2018). Está escrevendo “Demerara”, um romance que se passa no contexto da chegada da gripe espanhola ao Brasil, com previsão de lançamento em 2020.

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