Em um momento de incerteza global sem precedentes — pandemia, incêndios, tensões geopolíticas e aumento das desigualdades —, líderes mundiais não se encontraram presencialmente em Nova York para o debate geral da Assembleia das Nações Unidas. Pela primeira vez em 75 anos, chefes de Estado e governo enviaram discursos gravados para um debate que está sendo virtual. Também, no dia 21 de setembro, um dia antes do início do debate geral, para o evento de alto nível que marcou o aniversário da ONU, as mensagens foram entregues por vídeo e uma declaração. Nelas, o compromisso pelo multilateralismo e a cooperação global foram reafirmadas e adotadas por consenso.
Mesmo antes da propagação devastadora da covid-19, diversas partes do mundo já sofriam com a polarização política e as divisões ideológicas. Na era das fake news, debates sobre o que constitui fato e ficção são crescentes, representando uma ameaça genuína à estabilidade tanto em lugares de renda mais alta quanto mais baixa. E, mesmo assim, em todo o mundo, a maioria das pessoas — independentemente de sua origem, gênero ou idade — compartilha preocupações e esperanças comuns sobre o futuro. Essa é apenas uma das conclusões de uma notável iniciativa consultiva liderada pela ONU para marcar seu aniversário de 75 anos.
Em meio ao tumulto e à turbulência mundial, as Nações Unidas estão promovendo a maior conversa da sua história sobre o futuro global. Entre janeiro e agosto de 2020, mais de 1 milhão de pessoas em 193 países compartilharam, por meio de pesquisas de opinião e diálogos, suas preocupações, prioridades e possíveis soluções para os principais desafios comuns que enfrentamos. As mudanças climáticas são uma das maiores preocupações e as grandes prioridades são a importância de construir o consenso necessário e a cooperação global para enfrentá-la.
Apesar de aparente aumento do nacionalismo e declínio do apoio ao multilateralismo, a maioria das pessoas deseja mais cooperação global, não menos. Quase nove em cada dez respondentes da pesquisa acreditam que a colaboração internacional é vital para enfrentar os desafios contemporâneos. Cerca de três quartos deles também acreditam que as Nações Unidas devem ter um papel de liderança nesses esforços. Dito isso, há também, entre os respondentes, esperança de uma forma mais diversificada e inclusiva de ação global – por meio de uma abordagem que traga as vozes das mulheres, dos jovens, da sociedade civil e dos indígenas, junto com o setor privado e autoridades locais, para a mesa.
Embora o apoio público às Nações Unidas continue forte — seis em cada dez pessoas dizem que a organização tornou o mundo um lugar melhor —, mais da metade de todos os que responderam à pesquisa sentem a ONU como algo distante de suas vidas cotidianas. A maioria das pessoas ainda não tem certeza sobre o que a organização faz.
Ainda que a Carta das Nações Unidas comece com as palavras “Nós, os Povos das Nações Unidas”, muitas pessoas se sentem marginalizadas. Como resultado, uma parte considerável do público se sente distante das instituições internacionais, tornando mais fácil para governos populistas desconsiderá-las. Existe um risco real de que a desconfiança global comprometa nosso futuro .
De forma mais otimista, há sinais de que o apoio popular à cooperação global e às Nações Unidas tem aumentado desde o início da pandemia. Apesar das recriminações por parte dos EUA, a Organização Mundial da Saúde ainda é amplamente respeitada. E, ao mesmo tempo em que o surto da covid-19 tem exposto as fragilidades e falhas do sistema internacional, também tem mostrado a importância de mais cooperação, não menos. Com os sistemas políticos e econômicos enfrentando profundas incertezas, e as cadeias de suprimentos globais cada vez mais fragmentadas, há uma oportunidade única de imaginar e redefinir as parcerias globais e o contrato social na qual se baseiam. Isso é ainda mais importante porque a covid-19 é apenas um ensaio para outros grandes desafios que estão por vir.
Os respondentes da pesquisa concordaram que lidar com as vulnerabilidades socioeconômicas e ambientais exacerbadas pela covid-19 são as prioridades mais urgentes. Entre as questões mais importantes para eles estão o acesso a serviços básicos, como água, saneamento, saúde e educação. Em seguida, eles concordam que uma maior solidariedade e apoio compartilhado devem ser dirigidos aos lugares mais duramente atingidos pela pandemia. Além disso, cerca de 72% acredita que o acesso a assistência médica será igual ou melhor nos próximos 25 anos.
As mudanças climáticas são uma das maiores preocupações e as grandes prioridades são a importância de construir o consenso necessário e a cooperação global para enfrentá-la
No que diz respeito aos desafios futuros mais urgentes, as pessoas que responderam a pesquisa são enfáticas em que mudança climática é prioridade absoluta. É também o que a maioria das pessoas considera que deve ser a prioridade das Nações Unidas e da cooperação internacional. Há uma ansiedade generalizada sobre os impactos da crise climática e, em particular, temores de que as que as condições ambientais possam se deteriorar ainda mais nos próximos anos. Essa preocupação é fundamentada por inúmeros estudos científicos , e por mudanças já sentidas por muitos de nós, como o aumento constante das temperaturas, os incêndios florestais, o derretimento de geleiras e o rápido declínio da biodiversidade.
As preocupações com o meio ambiente são ainda mais prevalentes na América Latina e no Caribe, de acordo com a pesquisa. Aliás, nas diferentes regiões, os respondentes demonstraram maior preocupação de acordo com os desafios mais urgentes que enfrentam no nível local. Na Bacia Amazônica, o desmatamento está se aproximando de um ponto de inflexão irreversível . Mais de 90% de todo o desmatamento é ilícito , e para vencer a crise climática na região também é necessário combater o crime ambiental.
Outra área de profundo consenso entre as pessoas que responderam a pesquisa e participaram dos diálogos é que a ONU precisa ser mais inclusiva na maneira como promove a cooperação global. Nos mais de 1.000 diálogos em 82 países, os participantes pediram que os Estados-membros e o secretariado da ONU engajem mais proativamente mulheres, jovens, sociedade civil e grupos vulneráveis no processo de tomada de decisão. As sugestões incluem desde reforma no Conselho Econômico e Social à nomeação de um ponto focal de alto nível da sociedade civil na organização. Como sempre, o problema não é a falta de ideias, mas a necessidade de angariar a vontade política necessária para abrir as Nações Unidas a processos mais plurais.
Embora estejamos vivendo uma fase turbulenta, volátil e que muitas vezes gera pessimismo, a consulta das Nações Unidas fornece motivos para termos otimismo quanto o futuro da humanidade. Apesar de uma sensação de falhas cada vez mais profundas, a maioria das pessoas está preocupada com as mesmas questões e tem aspirações semelhantes. Há também um compromisso real e genuíno com os valores das Nações Unidas e sua missão de construir um mundo mais pacífico, próspero e sustentável. Tornar as Nações Unidas mais responsiva perante “Nós, os Povos das Nações Unidas” é essencial para o futuro melhor que todos nós queremos.
Giovanna Kuele é doutoranda em ciência política pela City University of New York e pesquisadora do Instituto Igarapé, think tank brasileiro que trata de questões emergentes de segurança e desenvolvimento
Ilona Szabó de Carvalho é empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia), cofundadora e diretora-executiva do Instituto Igarapé e autora de “Segurança pública para virar o jogo”.
Robert Muggah é especialista em segurança e desenvolvimento e diretor de pesquisa do Instituto Igarapé.