É muito provável que, nos próximos anos, o início do processo de vacinação contra a covid-19 no Brasil seja estudado como um caso típico de difusão interconectada e descoordenada de políticas públicas. Marcado por uma ferrenha competição entre a União e o estado mais poderoso da federação, nenhum desses dois atores foi capaz de articular e coordenar o processo de vacinação no país, muito embora possamos identificar conexões entre as iniciativas errôneas adotadas pelo governo federal e o oportunismo político do governo de São Paulo.
No campo de políticas públicas, a perspectiva da ação interconectada/descoordenada tem como fundamento a comparação do papel de atores-chave e de mecanismos direcionais de adoção de políticas em três situações distintas: na primeira, o tomador de decisão age com base nos fatores internos da sua jurisdição, não considerando as ações dos governos vizinhos, portanto, sem coordenação; na segunda, a difusão da política ocorre em uma ação coordenada, seja por organismos internacionais, por um conjunto de governos ou mesmo por um poder central; na terceira, que é uma combinação das duas anteriores, a ação seria descoordenada, mas interconectada, ou seja, a tomada de decisão é feita de forma independente, mas levando em consideração as escolhas de outros governos.
O padrão interconectado e descoordenado de disseminação da política de vacinação contra a covid-19 no Brasil foi determinado, sobretudo, pelo processo de competição pré-eleitoral desencadeado pelo presidente da República e pelo governador de São Paulo, ainda que outros atores institucionais também tenham cumprido um papel importante no acirramento dessa disputa (Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e os demais governadores de estados).
Grosso modo, são quatro os mecanismos político-institucionais propulsores da difusão de políticas públicas: aprendizado, emulação, coerção e competição. O mecanismo do aprendizado é baseado na premissa de que a tomada de decisão de um governo sobre adotar uma nova política parte de uma racionalidade na qual são analisados os pontos positivos e negativos, inclusive comparando os êxitos e os fracassos das experiências alheias, ou seja, aprende-se com que o outro já fez.
A emulação é quando um governo reproduz experiências de outros governos sem um planejamento prévio que leve em consideração se a “política importada” funcionaria no seu contexto econômico, político e social. Pode parecer similar à aprendizagem, mas são atitudes contrastantes. Enquanto na aprendizagem os “policy makers” avaliam as consequências das políticas para agir a partir do que deu certo (ênfase na ação); na emulação, o foco está em ser, ou ao menos parecer, igual a um outro governo (ênfase no ator).
O novo coronavírus não respeita os limites federais, estaduais e municipais; muito menos as ambições eleitorais dos seus respectivos mandatários
No processo descoordenado e interconectado de difusão da política de vacinação no Brasil, a emulação parece ter sido o papel reservado aos estados que não contam com a mesma estrutura e capital científico presentes no estado de São Paulo, exemplarmente representados pelo Instituto Butantan e seu notável grupo de cientistas; ainda que outros importantes estados da federação contem com instituições igualmente renomadas na área científica e com capacidade técnica para a produção da vacina e sua posterior difusão para os demais entes federativos, como é o caso da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) no Rio de Janeiro.
O mecanismo da coerção é basicamente a pressão que pode ser oriunda de um governo central, de organismos internacionais e/ou de grupos de interesse para que um governo local adote determinadas políticas ou diretrizes em seu âmbito. Esse foi o caminho frustrado pelo Supremo Tribunal Federal quando o governo Bolsonaro tentou impor a sua agenda negacionista a todos os entes federativos, garantindo a autonomia de estados e municípios nas políticas de combate à covid-19.
Por último, abordamos o elemento que melhor representa o processo de vacinação iniciado no país no já histórico 17 de janeiro de 2021. A competição é um mecanismo cujo pressuposto indica que um governo adota uma nova política pensando em sua sobrevivência, portanto, há uma dimensão político-eleitoral no qual são analisados os ganhos sobre governos rivais. Na produção acadêmica em políticas públicas, os casos clássicos referem-se à chamadas “guerras fiscais” entre unidades da federação como aquelas que marcaram as acirradas disputas pelas plantas industriais da montadora Ford nos anos 1990, que, diga-se de passagem, recentemente deixou o país depois de receber bilhões em incentivos públicos por parte de estados concorrentes sob a desarticulada complacência de sucessivos governos federais.
Contudo, no caso da campanha de vacinação contra a covid-19, o processo de competição não ocorre apenas nas disputas intrafederativas horizontais no âmbito dos estados e municípios, mas sim, e sobretudo, em sua dimensão hierárquica vertical, entre a União e o estado mais poderoso da federação. Mais precisamente, entre a administração federal de Jair Bolsonaro e a administração estadual de João Doria, dois políticos que chegaram como aliados em seus respectivos cargos eletivos e que agora governam como adversários com “olhos e braços” no próximo pleito presidencial.
Em síntese, a competição política entre o governo Bolsonaro e o governo Doria constitui a principal marca do processo descoordenado, interconectado e, sobretudo, tardio da vacinação no Brasil. Até o momento, a percepção comum na comunidade científica é que esta competição pré-eleitoral tem mais prejudicado do que favorecido a política pública de combate à covid-19 no país, que já ceifou mais de 200 mil vidas em toda a federação. O novo coronavírus não respeita os limites federais, estaduais e municipais; muito menos as ambições eleitorais dos seus respectivos mandatários.
Desafortunadamente — assim como a esperança de que em breve estaremos livres deste mal que assola toda a humanidade ao sul e ao norte da linha do Equador —, no Brasil, a expectativa de que este processo de difusão interconectado e descoordenado predomine apenas na “largada competitiva” da vacinação é pequena. A tendência é que os governos de Jair Bolsonaro e João Doria busquem cada vez mais o protagonismo sobre a vacinação dos seus eleitores, sepultando, junto com as milhares de vidas que ainda serão levadas pela covid-19, a possibilidade de um processo cooperativo, solidário e coordenado de combate a essa calamidade pública que afeta todos os entes da federação para muito além das fronteiras políticas e territoriais do Distrito Federal e do estado de São Paulo.
Sidney Jard da Silva é cientista político, professor do bacharelado em políticas públicas da UFABC (Universidade Federal do ABC). É coautor do livro “Difusão de políticas públicas”.
Eliane Cristina da Silva Nascimento é pedagoga, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da UFABC.
Os conceitos desenvolvidos ao longo deste ensaio são abordados em maior profundidade no capítulo intitulado “Difusão de políticas públicas em perspectiva discursiva: análise da literatura brasileira” do livro “As teorias e o caso” (no prelo), organizado por Mariana Batista, Ednaldo Ribeiro e Rogério Arantes.