A relação dos cristãos com o governo Bolsonaro

Ensaio

A relação dos cristãos com o governo Bolsonaro
Foto: Adriano Machado/Reuters - 8.jan.2021

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Márcio Moretto Ribeiro


24 de outubro de 2021

Aqueles que convivem em ambiente heterogêneo estão sujeitos a pressões sociais que os desincentivam a expor suas posições publicamente por receio da reação dos pares

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Nos últimos meses a avenida Paulista foi palco de manifestações favoráveis e contrárias ao governo Bolsonaro. Enquanto os defensores da atual gestão se organizam para deslegitimar as instituições democráticas e liberais como o Supremo Tribunal Federal e o próprio sistema eleitoral, seus críticos têm dificuldades de articular uma ampla frente em defesa dessas mesmas instituições. A dificuldade se reflete na realização de atos independentes. No dia 12 de setembro, os movimentos Brasil Livre e Vem Pra Rua levaram vários políticos, mas poucos manifestantes às ruas. Já no dia 2 de outubro, movimentos de esquerda levaram muito mais gente, embora ainda não o suficiente para superar o ato do dia 7 de setembro.

Segundo as pesquisas do Monitor do Debate Político no Meio Digital, os perfis demográficos dos três atos foram bastante distintos entre si. Se, por um lado, os mais ricos estavam super-representados no ato bolsonarista, por outro, os mais pobres e os menos escolarizados estavam muito subrepresentados nos outros dois. O que mais chama a atenção, porém, é a baixíssima proporção de cristãos nos atos críticos. Na manifestação puxada pelos grupos de direita apenas 30% espontaneamente se declararam católicos e 13% evangélicos. Já no ato puxado pelas esquerdas, as porcentagens são ainda menores, 19% e 13%, respectivamente. Para efeito de comparação, quando o último Censo foi realizado em 2010 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 65% dos brasileiros se declararam católicos e 22% evangélicos. A constatação causa estranheza porque, como a população como um todo, a maioria dos cristãos desaprova o governo. Segundo a última pesquisa Datafolha realizada no dia 15 de setembro, 56% dos católicos e 41% dos evangélicos avaliam o atual governo como ruim ou péssimo. Mas, se eles, como a maioria dos brasileiros, também estão insatisfeitos com a inflação, com o avanço da pobreza, com o alto índice de desemprego, com o acúmulo de denúncias de corrupção e com o negacionismo da gravidade da pandemia, por que não se manifestam? O argumento que pretendo desenvolver é de que a rede de sociabilidade politicamente heterogênea na qual os cristãos descontentes com o governo estão inseridos provoca desengajamento.

Desde os primeiros estudos estatísticos sobre padrão de voto nos EUA nos anos 1940, cientistas políticos apontam que pessoas com identidades conflitantes tendem a decidir o voto tardiamente. A ideia é que relações sociais que tencionam o indivíduo em direções opostas produzem uma espécie de apatia política. Observamos esse efeito nas últimas eleições presidenciais. Mulheres conservadoras foram as últimas a decidir seu voto. Elas estavam sujeitas a essa pressão cruzada. Por um lado, Bolsonaro teve um fraco desempenho entre mulheres por conta de suas posições abertamente machistas em uma série de polêmicas, mas de outro ele se apresentou como defensor de pautas conservadoras.

Nos anos 2000, conforme algumas pesquisas de opinião nos EUA passaram a perguntar sobre a rede de sociabilidade dos entrevistados, essa linha de investigação foi retomada. As novas pesquisas permitiram isolar os indivíduos que declaram conversar sobre assuntos políticos com pessoas com ideologia conflitante. Os resultados indicam que pessoas expostas ao pensamento do campo adversário tem menor chance de ir votar, tendem a decidir mais tardiamente o voto e a participar de menos atividades políticas como colar cartazes e doar dinheiro para campanha. Mais recentemente, com a popularização das mídias sociais, o campo ganhou mais uma fonte de dados para explorar. Investigando a rede de contatos dos indivíduos nas mídias sociais, mais uma vez os resultados foram consistentes com os achados originais.

Embora o discurso conservador de Bolsonaro não seja suficiente para convencer a maioria dos cristãos a aprovar seu governo, ele é suficiente para engajar uma minoria em sua defesa

São duas as principais explicações apresentadas pelos pesquisadores para esse fenômeno. Em primeiro lugar, o convívio em um ambiente homogêneo reforça as posições políticas dos indivíduos. Isso não ocorre com aqueles que convivem com a alteridade. Assim, esses últimos tendem a ter posições mais ambivalentes. Em segundo lugar, aqueles que convivem em ambiente heterogêneo estão sujeitos a pressões sociais que os desincentivam a expor suas posições publicamente por receio da reação dos pares. Ou seja, mesmo quando estão convictos de suas posições, eles tendem a mantê-las no âmbito privado.

Embora o discurso conservador de Bolsonaro não seja suficiente para convencer a maioria dos cristãos a aprovar seu governo, ele é suficiente para engajar uma minoria em sua defesa. No ato de 7 de setembro, por exemplo, os católicos representavam 37% do universo e os evangélicos 36%. O apoio religioso a Bolsonaro é minoritário, mas estridente e deve estar presente de maneira perceptível na maior parte dos espaços de congregação cristãos. Assim, os cristão críticos ao governo circulam em espaços de sociabilização politicamente heterogêneos, o que ajuda a explicar sua ausência nas manifestações.

Em “Hearing the Other Side: Deliberative versus Participatory Democracy” (2006, Ouvindo o outro lado: democracia deliberativa versus democracia participativa, em tradução livre), a cientista política Diana Mutz revisou as pesquisas sobre os efeitos para a democracia do convívio entre pessoas com posições politicamente conflitantes. Em uma mão, é positivo para a democracia que os cidadãos sejam capazes de ouvir o outro lado, de se engajar em debates e deliberar sobre questões políticas considerando todas as partes envolvidas. Ouvir o outro lado nos torna mais tolerantes e mais conscientes de nossos problemas coletivos. Na outra mão, uma democracia saudável requer cidadãos politicamente ativos, engajados em atividades políticas, capazes de expressar demandas silenciadas na esfera pública. Os resultados empíricos, porém, sugerem que o ambiente heterogêneo, propício para o desenvolvimento de cidadãos tolerantes, inibe o desenvolvimento de cidadãos politicamente atuantes.

Muitos defendem hoje a importância da demonstração de força nas ruas para conter impulsos golpistas. Alguns entendem que para isso é necessário a formação de uma frente ampla, seja de cima para baixo ou de baixo para cima. Outros estão descontentes, mas sem convicção suficiente para a mobilização. Muitos destes estão inseridos em uma rede de sociabilidade mais heterogênea e, portanto, talvez estejam em melhor posição para dissuadir seus pares de embarcar em uma aventura antidemocrática. Se o objetivo comum é defender a democracia e suas instituições, talvez a melhor estratégia seja a diversidade de táticas.

Gráfico sobre a religião das pessoas presentes nas manifestações da avenida Paulista, de acordo com o Monitor do Debate Político no Meio Digital

Márcio Moretto Ribeiro éprofessor doutor na Universidade de São Paulo e um dos coordenadores do Monitor do Debate Político no Meio Digital.

Colaboraram com o gráfico Gabriela Salles e Gabriel Zanlorenssi.

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