Dentre os diferentes temas que capturaram as eleições de 2022, a inconsistência da autodeclaração racial de alguns candidatos chamou a atenção. O caso mais notório foi o do candidato ao governo da Bahia, e atual prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto (União Brasil). Visto socialmente como branco, ACM Neto se registrou como pardo no TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Parte da polêmica transcendia a mera discordância em relação à sua identidade racial. Desde 2020, diferentes incentivos às candidaturas pretas, pardas e indígenas vêm sendo adotados pelo TSE e pelo Congresso. Nesta eleição, por exemplo, cada voto concedido a uma candidatura desse grupo contará como dois quando da distribuição de recursos do Fundo Eleitoral e Partidário em 2024. Além disso, o Brasil possui desde 2020 cotas mínimas de financiamento e tempo de TV para candidaturas de mulheres e não brancos, embora os partidos que desobedeceram a regra no pleito passado tenham sido anistiados.
Como raça é uma construção social que depende da subjetividade dos indivíduos, é muito difícil estabelecer métodos objetivos para averiguar se a autodeclaração de uma pessoa corresponde ao modo como ela é socialmente percebida. Para contornar esse problema em outras políticas de ação afirmativa, como as cotas nos concursos públicos ou nas universidades, o Estado brasileiro tem optado por bancas de heteroclassificação racial. Nelas, um grupo de pessoas opina sobre o modo como alguém é socialmente percebido.
Existem, é claro, inúmeras complexidades ainda não resolvidas sobre esse método. Quais devem ser os critérios de composição dessas bancas? Quem deve participar: especialistas, militantes, pessoas comuns? Apenas negros devem compor as bancas ou elas devem ser mistas? As mesmas dúvidas pairam sobre seus procedimentos internos. A autodeclaração racial deve ser validada por uma análise de fotos ou é preciso avaliar os candidatos ao vivo? Deve ser feita uma entrevista? Com quais perguntas?
Todas essas questões sugerem que a heteroclassificação tem de ser usada com cautela. Desde 2013, empregamos esse método, seja como forma de produzir números sobre a pertença racial de candidatos antes dessa característica ser registrada pelo TSE, seja como forma de medir as inconsistências da autodeclaração dessas candidaturas depois de 2014.
Os ganhos quanto à redução das desigualdades raciais na política, alardeados nas últimas eleições, devem ser lidos com um olhar extremamente crítico
Neste ano, o Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa), em parceria com o Núcleo de Pesquisa Flora Tristán (Universidade de Brasília), adotou o seguinte procedimento: as fotos de todas as candidaturas a deputado federal foram submetidas a três diferentes codificadores com diferentes origens sociais. Caso os três discordassem da autoclassificação registrada pelo candidato no TSE, ele era computado como um caso de inconsistência. Logo, trata-se de uma metodologia bastante tolerante em relação à fluidez racial brasileira, pois basta que um classificador considere o candidato(a) como não branco para que ele(a) seja assim considerado.
Dentre os 134 deputados federais eleitos no domingo (sem contabilizar ainda os eleitos pelo estado do Amazonas), nada mais do que 60 (45%) não passaram nesse teste. A imagem abaixo mostra esses casos:

Deputados federais eleitos em 2022 que de autodeclararam pretos e pardos
Tomando o total de eleitos para a Câmara, 11,8% (sem considerar os eleitos pelo estado do Amazonas) não passaram no teste em 2022. Esse valor é consistente com os dados encontrados na mesma pesquisa para as eleições de 2018, quando a diferença registrada foi de 13,6%. Uma vez que nas eleições de 2018 ainda não havia quaisquer incentivos na legislação eleitoral para a autodeclaração enquanto preto ou pardo, é possível supor que não houve uma ação instrumental em 2022 na indicação da autodeclaração para obter ganhos eleitorais. Ainda assim, a discrepância entre a autodeclaração e a heterodeclaração racial desses políticos coloca em xeque grande parte das análises feitas sobre os possíveis avanços da bancada negra no Congresso.
Autodeclaração x heterodeclaração

Ainda não é possível correlacionar esses números com os dados de financiamento para 2022, mas nas eleições anteriores a discrepância de brancos que se declararam pretos ou pardos significou uma diferença de R$ 60 milhões, equivalente a 14% do total de financiamento registrado em 2018. Ou seja, os ganhos quanto à redução das desigualdades raciais na política, alardeados nas últimas eleições, devem ser lidos com um olhar extremamente crítico.
Em 2018, 75% dos eleitos se declararam brancos e 24,4% pretos e pardos. Considerando a classificação feita pela pesquisa, o valor encontrado foi de 90,1% de brancos e 9,6% de pretos e pardos. O legislativo brasileiro é ainda mais branco do que os números oficiais sugerem.
Luiz Augusto Campos é professor de sociologia e ciência política no Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e coordenador do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa). É autor, coautor e organizador de vários artigos e livros, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”.
Carlos Machado é professor de ciência política no Ipol-UnB (Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília), onde coordena o Núcleo de Pesquisa Flora Tristán. É autor e coautor de vários artigos e livros, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil”.
Agradecemos a Thyago Simas, Fernando Meireles e Ana Carolina Vaz pelo apoio com a raspagem e processamento dos dados.