A erosão democrática de cada dia piorará sob Bolsonaro

Ensaio

A erosão democrática de cada dia piorará sob Bolsonaro
Foto: Carla Carniel/Reuters - 21.out.2022

João Villaverde e Beatriz Rey


26 de outubro de 2022

Não é à toa que tenhamos uma promiscuidade entre Executivo e Legislativo a partir de um orçamento apelidado de ‘secreto’. É tudo muito sutil porque, na superfície, parece que tudo continua normal

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O envelhecimento é um processo lento e quase imperceptível no dia a dia. Mas ainda que o rosto pareça inalterado, as fotos revelam o que se perde de vista: há três anos, tínhamos menos rugas e os fios brancos no cabelo eram pontuais.

Da mesma maneira, é difícil notar a erosão de uma democracia quando estamos inseridos em nossa rotina. De terça para quarta-feira e desta para quinta, parece até que está tudo igual. A erosão é sutil. No Brasil, diante de mais uma eleição, um olhar apressado pode levar a uma conclusão ingênua – e errada. Sim, estávamos diante das urnas dois anos atrás, nas eleições municipais; e há quatro anos, quando Jair Bolsonaro foi eleito. Mas resgate, agora, uma foto do país antes de Bolsonaro.

As instituições tinham o mesmo nome, mas agiam de forma muito distinta. A PGR (Procuradoria-Geral da República) tinha apresentado duas acusações de crime de corrupção passiva contra o presidente Michel Temer, a despeito de ter sido o próprio Temer a escolher Raquel Dodge para o comando da PGR. Temer, aliás, manteve o rito inaugurado pelo PT de selecionar procuradores a partir da lista tríplice da própria categoria. Agora pense em Augusto Aras, o PGR fora da lista tríplice, escolhido a dedo por Bolsonaro.

O Ministério da Saúde, cuja função é zelar pela saúde dos brasileiros, ignorou os fóruns permanentes de secretários de Saúde dos entes federados e ofertas de vacinas da Pfizer em plena pandemia. O Ministério do Meio Ambiente, instituição que deveria se dedicar à proteção ambiental, faz vista grossa para o aumento das invasões de terras públicas e das queimadas na Amazônia e no Pantanal. E o Ministério da Educação, para o qual a garantia do direito da qualidade educacional deveria ser prioridade, quase inviabilizou a aprovação do novo Fundeb (elaborado pelo Congresso e pela sociedade civil). Mais: trabalhou pelo homeschooling e pela militarização, não geriu a rede educacional durante a pandemia e teve até seu ministro preso por esquema de corrupção.

O governo Bolsonaro, por meio das instituições que já existiam, deturpou a organização do Estado. Com isso, piorou o controle sobre os atos da administração pública. Não é à toa que tenhamos, hoje, uma promiscuidade entre Executivo e Legislativo a partir de um orçamento apelidado de “secreto”. É tudo muito sutil porque, na superfície, parece que tudo continua normal.

Guardadas as devidas proporções, algo semelhante ocorreu quando da instalação do regime de governo preferido de Bolsonaro – o da ditadura militar. Foram tanques na rua que depuseram João Goulart, o presidente da República, no 1º de abril de 1964. Ministros de Jango e algumas lideranças políticas a ele associadas foram cassadas e partiram para o exílio. Um general tomou o poder para si.

Na superfície, no entanto, a rotina geral (“de terça para quarta-feira e desta para quinta”) não mudou tanto nos primeiros meses. Os partidos que existiam antes de 1964 – PTB, PSD e UDN – continuaram a existir e a competir. Nas eleições para governadores, no final de 1965, a oposição aos militares ganhou em Minas Gerais e no antigo Estado da Guanabara (cuja capital era o Rio de Janeiro). Todos os eleitos tomaram posse em 1966, ainda que, no meio do caminho, um novo passo (cada vez menos sutil) fosse dado, com a decretação do AI-2.

Tudo o que Bolsonaro precisa é de uma reeleição por voto direto. Assim, ele usará da própria linguagem democrática para desmontar o que restou de defesa institucional para seu projeto de poder

Foi apenas quando ficou escancarada (para ficar no termo de Elio Gaspari), com os eventos de 1968, é que tinha ficado realmente claro se tratar de uma deterioração estrutural do sistema político. Era uma ditadura e, a partir de 1968, isso era simplesmente indiscutível.

Na superfície, a ditadura mantinha todas as instituições de controle como aparentemente funcionais. Os tribunais de contas, as cortes superiores, a imprensa – superficialmente, “um país normal”.

Como escreveu o cientista político Tom Pepinsky, a vida cotidiana em regimes autoritários – principalmente em regimes nos quais as instituições continuam “operando” – é chata e tolerável. Entretanto, há uma diferença fundamental: eleições em regimes autoritários não mudam lideranças políticas. O processo eleitoral serve apenas para perpetuar autocratas no poder.

Hoje, 2022, com o Congresso cooptado via orçamento secreto, PGR amiga e tendo aliados nos governos de importantes colégios eleitorais, como Rio de Janeiro, Paraná e Minas Gerais, Jair Bolsonaro ainda goza da vista grossa feita por operadores do mercado financeiro, que fizeram pouco caso do calote de precatórios e do drible do teto de gastos. Tudo o que Bolsonaro precisa, neste momento, é de uma reeleição por voto direto. Se reeleito, ele usará da própria linguagem democrática para desmontar o que restou de defesa institucional para seu projeto de poder.

De terça para quarta, essa deterioração não será tão evidente. Mas não podemos nos enganar: apesar de não perceptível, a erosão dos mecanismos de competição política e pesos e contrapesos será maior se Bolsonaro for reeleito, podendo atingir até a lisura das eleições. Será difícil reverter esse quadro.

João Villaverde é professor e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-SP (Fundação Getulio Vargas).

Beatriz Rey é doutora em ciência política e pesquisadora visitante na Universidade Johns Hopkins (EUA).

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