Em um país com histórico de violência policial, a redução em 4% na taxa de pessoas mortas por agentes de segurança em 2021, como mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, poderia ser celebrada se não fosse o agravamento das consequências do racismo institucional: se por um lado as pessoas brancas morreram 31% menos, por outro, as negras morreram 5,8% mais.
Os dados de letalidade policial por unidades da federação são ainda mais preocupantes quando o foco é o estado do Rio de Janeiro, que registrou aumento de 8% nas mortes causadas por policiais militares e civis.
O estado fluminense é objeto da ADPF 635, conhecida como ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) das Favelas, ação movida no STF (Supremo Tribunal Federal) pelo PSB e amici curiae de entidades da sociedade civil, que determina que o estado adote medidas no enfrentamento à violência institucional. Um dos pedidos, por exemplo, é a elaboração de um plano com ações concretas para reduzir a letalidade policial.
Algumas decisões já foram tomadas no âmbito deste processo judicial. Em 2020, por exemplo, o STF estabeleceu limites às operações policiais no Estado do Rio de Janeiro. Vista como uma vitória, ainda que parcial, a decisão, de um modo geral, colocou no centro o direito à vida das pessoas moradoras das comunidades no contexto de pandemia da covid-19. Naquele ano, o número de vítimas fatais por intervenção policial caiu 30% no estado.
Os meses correram, mas as determinações do STF ainda estão em vigência – fato que as forças de segurança pública do Rio de Janeiro parecem ignorar, como revela o Anuário. A despeito da decisão da Suprema Corte e da crescente mobilização social no enfrentamento à violência policial, o Rio de Janeiro protagonizou recentemente diversos episódios de extrema desproporcionalidade no uso da força, sendo o mais letal deles a chacina do Jacarezinho, que deixou 28 mortos em 2021.
A despeito da decisão do STF e da crescente mobilização social, o Rio protagonizou recentemente diversos episódios de extrema desproporcionalidade no uso da força
O afrontamento à decisão do STF causaria espanto se não fosse conhecido o poder do racismo nas estruturas das instituições. Nesse sentido, ao invés de se mobilizar para salvar vidas, especialmente de pessoas negras que ocupam os territórios periféricos, o governo do Rio de Janeiro prefere assumir o risco de consequências legais e constrangimentos internacionais — considerando que a letalidade policial já foi denunciada na ONU (Organização das Nações Unidas) e em outros organismos — quando não cumpre à risca as decisões no âmbito da ADPF das Favelas.
Letalidade policial se enfrenta com políticas públicas focalizadas e capazes de reconhecer a centralidade do racismo e seus impactos na violência estatal e na mortalidade violenta das pessoas negras. Ao longo dos anos, a intensa mobilização da sociedade civil e do movimento negro indicaram importantes caminhos na direção do controle da atividade policial, entre eles a necessidade de implantação de GPS em viaturas e câmeras nos uniformes policiais. Implementadas, adequadamente e com efetivo exercício do controle administrativo e social, tais medidas têm grande possibilidade de êxito. Ainda que não tenha aprimorado plenamente os instrumentos de controle, o Estado de São Paulo já oferece importante exemplo do potencial de tais medidas, com redução da letalidade, após sua implementação.
Há também um movimento no Rio de Janeiro a respeito do uso de equipamentos de gravação. Na ADPF das Favelas, o pedido é para que o estado instale GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas e nas fardas, dando prioridade para aqueles agentes que atuam em comunidades pobres. Em maio deste ano, o governo, por sua vez, começou a instalação dos equipamentos em batalhões da Polícia Militar de bairros nobres, como Leblon e Copacabana.
A relação direta entre letalidade policial e racismo estrutural é evidente. Cabe às instituições, portanto, reconhecerem que o histórico modelo de exclusão, repressão e extermínio de pessoas negras adotado pelo país gera a assimetria de tratamento pelas polícias em relação a não-negros. Enquanto isso não for colocado no centro do debate da segurança pública, o tiro que sai da arma policial continuará tendo como alvo preferencial pessoas de uma cor e de um endereço específicos, a saber: negras e moradoras de periferias e comunidades.
Gabriel Sampaio é advogado e coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos.
Juana Kweitel é advogada e diretora-executiva da Conectas Direitos Humanos.