A violência política e a desinformação de gênero no Brasil

Ensaio

A violência política e a desinformação de gênero no Brasil
Foto: Ueslei Marcelino/REUTERS

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Paula Tavares e Gustavo Borges


03 de dezembro de 2023

Disseminação intencional de informações falsas com o intuito de causar danos é sistematicamente empregada contra mulheres. Prática visa ameaçar, intimidar, silenciar e excluir

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A conquista de uma paridade de gênero ainda está distante, sobretudo no contexto da política. Conforme os dados do Mapa de Mulheres na Política da IPU-ONU , a média global de representação feminina nos parlamentos é baixa, registrando apenas 26,5%. Além disso, no início de 2023, apenas 27% das nações possuíam uma líder feminina , apesar de as mulheres representarem 49,7% da população global .

No Brasil,a representação de mulheres na política não tem acompanhado as conquistas alcançadas por movimentos femininos e avanços legislativos em prol da igualdade de gênero. No cenário político nacional, o Senado Federal apresenta pouca participação feminina, de 18,5%, enquanto na Câmara dos Deputados esse índice é ainda menor, atingindo apenas 17,7%. De acordo com pesquisa do Instituto Alziras , considerando o âmbito municipal, os números são ainda mais impactantes. As mulheres governam 12% dos municípios do Brasil. Quando se analisam os dados das mulheres negras, o percentual cai para 4%. As regiões com os maiores percentuais de prefeitas mulheres são o Norte (15%) e o Nordeste (17%), enquanto o Sul (9%) e o Sudeste (8%) ocupam as últimas posições.

Propósito final da desinformação de gênero é reduzir a participação pública e limitar a diversidade de vozes e opiniões, inclusive na mídia

Esses números não apenas ficam aquém da média mundial, mas também estão significativamente abaixo da representação demográfica equitativa, destacando a urgência de esforços contínuos para promoção da igualdade de gênero na esfera política, em consonância com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 das Nações Unidas .

A desigualdade de gênero na política é alimentada, em parte, pela violência política de gênero. Apesar de serem minoria na política, as mulheres foram vítimas de 36% dos casos de violência política registrados no Brasil entre 2020 e 2022.

A violência contra as mulheres na política é cada vez mais reconhecida em todo o mundo como uma tática emergente para dissuadir a participação delas, especialmente na sociedade da informação, em que as novas tecnologias ampliam a manifestação da liberdade de expressão, mas também multiplicam os riscos e ameaças no ambiente online. Dentre todas as manifestações de violência política, as formas não físicas, como assédio e abuso online, predominam .

A desinformação , que consiste na disseminação intencional de informações falsas com o intuito de causar danos, emerge como um desafio significativo nesse contexto.

A desinformação fundamentada em questões de gênero, portanto, representa uma vertente de violência política de gênero que busca minar a liberdade de expressão e enfraquecer os fundamentos democráticos.

Além de ser uma arma de influência política, a desinformação de gênero é sistematicamente empregada contra mulheres na vida pública. Mesmo aquelas que alcançam votações históricas na vida política estão sujeitas a uma variedade de ataques pelo simples fato de serem mulheres. As consequências não se limitam aos prejuízos individuais, acentuando estereótipos sexistas e fomentando atitudes misóginas, de modo a desencorajar as gerações mais jovens de buscar cargos públicos ou ingressar na esfera pública .

Pesquisas demonstram que, no Brasil, 58% das mulheres prefeitas afirmam ter sofrido assédio ou violência política pelo fato de ser mulher , sendo que, destas, apenas a metade registrou queixas ou boletim de ocorrência, cerca de 74% sofreram divulgação de informações falsas e 66% foram alvo de ataques de discurso de ódio nas plataformas de mídias sociais.

Nos últimos anos, algumas medidas foram tomadas pelo Brasil para mitigar o problema, como a promulgação da Lei Federal 14.192, de 4 de agosto de 2021, que criminaliza a violência política contra a mulher. As eleições de 2022 foram as primeiras após a vigência da lei, contando, inclusive, com uma página dedicada exclusivamente para denúncias de violência política de gênero.

O cenário reforça a necessidade de um conceito claro do que é desinformação de gênero, destacando a urgência de medidas concretas para mitigar e prevenir essa forma específica de violência política. No âmbito desse tema, a Relatora Especial das Nações Unidas para a Liberdade de Opinião e Expressão, Irene Khan, promoveu uma consulta pública , visando reunir perspectivas sobre as relações entre a liberdade de expressão e as dimensões de gênero da desinformação.

O desfecho dessa consulta encontra-se detalhado no Relatório das Nações Unidas A/78/288 , que evidencia que a desinformação de gênero se utiliza de preconceitos, estereótipos, sexismo, misoginia e normas sociais e culturais fundamentadas em valores patriarcais. Essa prática visa ameaçar, intimidar, silenciar e excluir mulheres e indivíduos não conformes com as expectativas de gênero dos espaços públicos e posições de poder. O propósito final da desinformação de gênero é reduzir a participação pública e limitar a diversidade de vozes e opiniões, inclusive na mídia.

Para a construção de um conceito claro de desinformação de gênero, é crucial considerar três atributos fundamentais: conteúdo, objetivo e alvo. O conceito tradicional de desinformação, definido como a disseminação intencional de informações falsas com o intuito de causar danos, revela-se inadequado para abordar de maneira abrangente a complexidade da violência contra as mulheres, conforme discutiremos a seguir.

No que tange o conteúdo, a desinformação de gênero não se limita apenas à propagação de informações falsas; ela pode incorporar narrativas de gênero preexistentes, manipulando-as e amplificando-as para reafirmar estereótipos e preconceitos arraigados . Quanto ao objetivo, vale salientar que a desinformação de gênero não tem apenas o propósito de causar danos individuais; sua meta é dissuadir ativamente a participação das mulheres na esfera política. No que diz respeito ao alvo, é preciso destacar que a desinformação de gênero se direciona especificamente às mulheres.

Portanto, podemos entender a desinformação de gênero como a disseminação de informações falsas, manipuladas ou amplificadas que reafirmam estereótipos e preconceitos contra mulheres, com o objetivo de dissuadir ativamente a participação feminina na esfera política, enfraquecendo instituições democráticas e minando a coesão de sociedades inclusivas.

Em última análise, a compreensão do fenômeno da desinformação de gênero oferece não apenas clareza conceitual, mas também uma base sólida para a implementação de estratégias eficazes. Avançar requer a colaboração contínua entre governos, sociedade civil e plataformas de mídia social, visando combater a disseminação de desinformação de gênero e, por consequência, promover ativamente a igualdade de gênero na esfera política.

Paula Tavares é Global Fellow no Brazil Institute e especialista-sênior em direito e gênero do Banco Mundial.

Gustavo Borges é professor de Direitos Humanos e Novas Tecnologias na Unesc (Universidade do Extremo Sul Catarinense) e consultor em direito e novas tecnologias.

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