Pareceria improvável, mas as escolas públicas estão no meio do cipoal de iniciativas de militarização da política e das políticas públicas que proliferaram no país nos últimos anos. No STF (Supremo Tribunal Federal) está em julgamento a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) n. 7662. Nessa ADI, o STF julga a constitucionalidade da lei que cria o Programa Escola Cívico-Militar na rede estadual de ensino de São Paulo.
Segundo a lei questionada, policiais militares da reserva passarão a atuar como monitores e gestores militares nas escolas públicas, recebendo para isso remunerações, adicionais às aposentadorias, de R$ 6,3 mil a R$ 9,4 mil, conforme a patente, e pagas mensalmente com recursos da pasta da Educação. O salário inicial de um professor categoria “O” (temporário) no estado de São Paulo é de R$ 5 mil. Segundo a legislação, os militares também ministrarão atividades ditas extracurriculares, dentro da sala de aula.
Em agosto, o TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo) suspendeu a aplicação da lei. No STF, o tema foi objeto de audiência pública em outubro, quando ficou evidente a unânime oposição à militarização por parte de organizações científicas, sindicais e sociais do campo da educação. A medida foi defendida por gestores de escolas militarizadas, associações de militares da reserva e parlamentares que os representam.
Apesar disso, em novembro, Gilmar Mendes, relator da ADI, decidiu restabelecer a validade da lei, abrindo caminho para a implantação da política de militarização de escolas públicas na maior rede de educação básica do país. A decisão de Mendes foi colocada para análise no Plenário Virtual do STF e Alexandre de Moraes pediu vistas em 7 de dezembro, suspendendo o julgamento.
Para além da vocação autoritária, a militarização escolar é projeto político dos setores militares para a disputa estratégica das classes médias
O caso tem a possibilidade de colocar um freio à crescente militarização da educação básica no Brasil. Nos últimos meses, temos trabalhado em um mapeamento nacional que pretende ser o mais abrangente sobre o fenômeno. O dado mais atualizado da pesquisa indica que funcionam hoje no país 706 escolas estaduais e 475 escolas municipais do tipo “cívico-militar” – isto é, com gestão mista realizada por profissionais da educação e da segurança pública ou de forças militares. Há em alguns municípios a gestão escolar por guardas municipais, que, apesar de civis, mimetizam também as práticas militares na escolarização; e há escolas privadas (22, até o momento) que adotaram as práticas marciais e o nome-fantasia “cívico-militar” como diferencial mercadológico.
Nunca é demais lembrar que a Constituição Federal de 1988 nasceu para dar fim ao regime autoritário que a antecedeu. Portanto, fazer o que fazem os defensores do modelo, ao interpretar os objetivos, princípios e direitos educacionais inscritos na Constituição com vistas a arreglar algum tipo de composição com a educação autoritária e militarmente tutelada do passado é um acinte que equivale a torturar o texto constitucional.
Os grupos pedagógica e financeiramente interessados em ocupar militarmente as escolas torturam o texto constitucional para fazer caber na liberdade de ensino a sua pedagogia da caserna, no pluralismo de concepções a sua ideologia autoritária e na gestão democrática a repressão armada a qualquer conduta juvenil. Essas são mostras de que a militarização escolar, tal qual o militarismo de feições mais explicitamente golpistas que nos assola, também pretende fazer ruir o paradigma democrático de 1988.
A fim de disfarçar suas veleidades antidemocráticas, o discurso pró-militarização escolar aferra-se à fragilíssima tese de que a presença das fardas e coturnos nas escolas teria relação causal positiva com a melhoria de indicadores de aprendizagem. À parte o debate público tipicamente simplório que se estabelece em torno do atingimento e da variação de indicadores como o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), os dados que temos até o momento nos permitem afirmar que a alegação de que a militarização melhoraria a qualidade das escolas públicas é falsa.
Os dados do Censo Escolar e do Saeb (Inep) anteriores ao boom das cívico-militares indicam que a seleção das escolas para militarização já costuma privilegiar aquelas com melhor infraestrutura e indicadores de aprendizagem mais elevados, em especial nas redes de ensino mais homogêneas, como as estaduais. Além disso, parte dessas escolas realiza processos seletivos e chega a cobrar taxas das famílias para a compra de fardamento e outras despesas. Isso nos leva concluir que, para além da vocação autoritária, a militarização escolar é projeto político dos setores militares para a disputa estratégica das classes médias.
Há riscos adicionais a serem considerados, em especial o crescente alinhamento do Brasil a países notoriamente restritivos à liberdade acadêmica num contexto em que a perseguição, a censura e as ameaças a educadores, pesquisadores e estudantes ganham escala mundial.
Em resposta a isso, o Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) endossou, durante a sua 56ª sessão, em maio de 2024, o documento “Princípios para a implementação do direito à liberdade acadêmica”. Segundo o texto, a militarização escolar é uma grave forma de violação à liberdade e à autonomia acadêmicas. Com isso consolida-se o entendimento, veiculado por diversas organizações de direitos humanos em organismos como Comitê dos Direitos da Criança da ONU, Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relatoria Especial sobre o Direito à Educação da ONU, etc., sobre a incompatibilidade da militarização escolar com os padrões internacionais de direitos humanos que o Brasil deveria preservar.
Se o país discute a oportunidade de, enfim, livrar-se da tutela militar da política e desbaratar a institucionalidade golpista que veio à tona nas últimas semanas, não se pode desconsiderar que a trama é parte de uma estratégia ampla. Agora sabemos: abrange desde operações de vanguarda para o assassinato das mais altas autoridades da República até a tática de corrosão a partir da base, com a ocupação militar de escolas públicas de educação básica.
Salomão Ximenes é professor da UFABC (Universidade Federal do ABC) e pesquisador do CNPq; integra a REPU (Rede Escola Pública e Universidade), o ONVE (Observatório Nacional da Violência contra Educadores/as) e a Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação).
Fernando Cássio é professor da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), integra a Rede Escola Pública e Universidade e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.