Emendas parlamentares não vão desaparecer. Muitas vezes retratadas com desconfiança no noticiário, as emendas parlamentares no Brasil são a forma como deputados e senadores destinam recursos do Orçamento federal para finalidades específicas, como a construção de um posto de saúde ou uma obra de infraestrutura urbana. Apesar de esse mecanismo existir no país há muitos anos, o seu destaque recente deve-se ao aumento expressivo dos valores alocados.
Segundo dados da recém-lançada Central das Emendas, plataforma colaborativa que organiza informações sobre emendas parlamentares, os valores empenhados nesse mecanismo saltaram de R$ 4 bilhões em 2015 para R$ 46 bilhões em 2024, um aumento de mais de dez vezes em uma década. Nos últimos cinco anos, o montante representou em torno de um quinto das despesas discricionárias do governo federal. Ou seja, boa parte do recurso que o governo pode escolher como gastar, excetuando as despesas pré-definidas como o pagamento de salários, está sendo definido por parlamentares.
Esse crescimento revela uma mudança estrutural. Desde 2016, as emendas individuais tornaram-se impositivas e os parlamentares ganharam autonomia para direcionar verbas sem depender do aval do Executivo. Sem o controle das emendas individuais, governo e congresso criaram as emendas de relator, iniciadas em 2020 e proibidas pelo Supremo Tribunal Federal em 2022, e ampliaram as de comissão, que saltaram de R$ 308 milhões, em 2022, para mais de R$ 8 bilhões, em 2023, conforme registra a Central das Emendas.
Debater o ‘fim’ das emendas não deve ser buscar a sua extinção, mas aprimorar a sua finalidade
Essas condições tornam ainda maior o desafio da transparência desse gasto. Os múltiplos portais públicos de dados sobre emendas parlamentares, como o SIGA Brasil do Senado Federal e o Portal da Transparência, têm sido bastante aprimorados nos últimos meses, mas ainda fornecem informações fragmentadas e de difícil compreensão. Adicionalmente, as próprias regras das emendas permitem, em diversos casos, omissão tanto dos autores como da destinação final do recurso.
Além disso, vale retomar a questão do papel do Congresso na democracia brasileira. O Congresso não deveria seguir a divisão clássica de poderes e concentrar seus esforços no debate sobre as leis do país e na fiscalização de políticas públicas, em vez de se dedicar à alocação fragmentada de recursos? Parece não ser essa a escolha dos legisladores. A trajetória política do Brasil na última década sugere que as emendas não devem diminuir drasticamente e estão muito longe de acabar. Isso seria compreendido como uma redução de poder do Congresso, o oposto da tendência que vemos nos anos mais recentes com o aumento gradativo do poder do Legislativo sobre o Orçamento.
É preciso, portanto, lidar de outra maneira com o debate sobre emendas parlamentares. Ainda há muito a ser compreendido sobre os resultados e impacto das emendas, até mesmo para elaborar melhores regras. Estudos sobre o tema ainda são escassos e muitas vezes analisavam um contexto político bastante distinto do atual. Ainda assim, bons questionamentos já apareceram. Por exemplo, enquanto Dayson Almeida classifica como um mito a ideia de que emendas parlamentares são alocadas de forma ineficiente, Fabiana Vieira e Luciana Lima identificam distorções na forma como as emendas parlamentares distribuem recursos na área de saúde. É possível que ambos os estudos estejam corretos, pois as evidências científicas demandam o acúmulo de um conjunto amplo de pesquisas, com metodologias e dados variados, para chegar a conclusões mais sólidas. É justamente esse volume de pesquisas no tema que falta para apoiar as decisões sobre emendas parlamentares.
O caminho é ampliar os estudos, as abordagens metodológicas e os recortes setoriais, regionais e temporais para se compreender melhor quais são as motivações e consequências políticas, quais são as boas práticas legais e regulatórias e ainda como fazer escolhas mais eficientes de alocação para impactar positivamente a sociedade. Esse esforço é coletivo e de longo prazo. As iniciativas do recém-criado Grupo de Estudos sobre Emendas Parlamentares, vinculado ao Insper e aberto à participação de pesquisadores de outras instituições, e da plataforma colaborativa Central das Emendas, visam avançar nesse sentido.
No Grupo de Estudos, os primeiros trabalhos já estão em desenvolvimento, e vão desde a elaboração de um guia para facilitar a compreensão do público sobre emendas parlamentares, até análises comparativas em nível internacional, passando por pesquisas sobre impactos de emendas na eleição de prefeitos e sobre o quanto a declaração de emergência em municípios serve como uma sinalização para receber mais desse tipo de recurso. Na Central das Emendas, pesquisadores, jornalistas e todos os cidadãos já podem acessar recortes de dados das emendas parlamentares de 2014 a 2024 de maneira até então inédita. Por exemplo, é possível selecionar uma das dez emendas bloqueadas pelo Ministro Flávio Dino, identificando as localidades beneficiadas e quais valores já foram pagos, ou selecionar emendas Pix e identificar os parlamentares e as cidades campeãs nessa modalidade. A plataforma apoia cidadãos e organizações que estudam e trabalham o tema das emendas para eles largarem bem mais à frente com o trabalho de dados já avançado.
Ambas as iniciativas estão reunidas no projeto “Melhores Emendas”, uma parceria entre o Insper, o Departamento de Informática da PUC-Rio, a Fundação Tide Setubal e o Nexo, com objetivo comum de formar uma comunidade de pesquisa, gerar conhecimento aplicado e ampliar a discussão sobre o assunto, para efetivamente contribuir para aprimorar o uso de emendas parlamentares.
Debater o “fim” das emendas não deve ser buscar a sua extinção, mas aprimorar a sua finalidade. O Congresso tem legitimidade para interferir no Orçamento, representando demandas regionais em um país diverso como o Brasil. No entanto, a fragmentação política na escolha do destino de parte relevante do orçamento público enfraquece soluções estruturais. Ampliar a transparência é um passo fundamental, mas é urgente substituir a lógica do “cada um por si” por alternativas de ação construídas coletivamente, fruto de debates e com base em evidências.
Marcelo Marchesini é gerente do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper
Bruno Bondarovsky é engenheiro de computação e idealizador da Central das Emendas