Entrevista

‘Ações para enfrentar racismo nas escolas têm de ser estruturais’ 

Mariana Vick

01 de maio de 2024(atualizado 02/05/2024 às 18h38)

Filha da atriz Samara Felippo foi alvo de colegas em colégio de elite de São Paulo. O ‘Nexo’ conversou sobre o tema com Alexsandro Santos, diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica do MEC

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FOTO: Amanda Perobelli/Reuters - 23.jun.2022Duas crianças, vistas de cima, manuseiam peças que representam letras sobre a mesa. Não é possível ver seus rostos. Uma está ao lado da outra.

Crianças brincam de formar palavras em escola em São Paulo

Se o racismo é uma realidade estrutural e sistêmica, o enfrentamento a ele também precisa ser, segundo Alexsandro Santos, doutor em educação pela USP (Universidade de São Paulo), professor de pós-graduação na Unicid (Universidade Cidade de São Paulo) e diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica do Ministério da Educação.

Agressões racistas contra crianças e adolescentes negros, como a que ocorreu com a filha de 14 anos da atriz Samara Felippo num colégio de elite de São Paulo, acontecem todos os dias em escolas públicas e privadas do Brasil, de acordo com Santos. Para o professor, as instituições de ensino devem adotar ações permanentes de reeducação das relações raciais para mudar o quadro.

Felippo relatou o caso que envolveu a filha no programa “Encontro”, da  TV Globo, na segunda-feira (29). Duas alunas do colégio Vera Cruz, um dos mais tradicionais de São Paulo, roubaram e rasgaram um caderno da adolescente e escreveram nele uma frase racista. A atriz registrou um boletim de ocorrência e pediu a expulsão das meninas da escola. 

O Vera Cruz se pronunciou sobre o caso. De acordo com uma mensagem enviada a pais de alunos pela instituição de ensino — uma das pioneiras a adotar um projeto antirracista entre as escolas de São Paulo —, a gestão escolar está trabalhando no tema e se comunicando com as famílias envolvidas. As adolescentes que vandalizaram o caderno da filha de Felippo foram suspensas por tempo indeterminado — os pais de uma das garotas já anunciaram que vão transferir a filha de escola.

O MEC (Ministério da Educação) deve anunciar uma política de educação antirracista ainda em maio, segundo informações do UOL. A pasta diz que a iniciativa vai prever o diagnóstico e o monitoramento da lei nº 10.639, que obriga o ensino sobre cultura africana e afro-brasileira nas escolas. Apesar de ter sido publicada há mais de 20 anos, a legislação não é plenamente cumprida.

FOTO: Reprodução/Ministério da EducaçãoHomem negro, careca, posa paa foto, sorrindo. Ele veste roupa social. Atrás dele há um desenho que parece ser de um mapa.

Alexsandro Santos, diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica do MEC

Santos conversou com o Nexo sobre o tema na terça-feira (30). Para ele, as escolas devem estabelecer “consequências claras e objetivas para esses atos de agressão, para que eles sejam interpretados como fora do aceitável”. Ignorar o caráter cotidiano do racismo faz com que ele siga se reproduzindo nas relações educativas, segundo o professor.

O que o caso de racismo contra a filha de Samara Felippo revela sobre as escolas brasileiras? 

ALEXSANDRO SANTOS É importante considerar, para responder essa pergunta, os conceitos de racismo institucional e racismo estrutural. Pensando a partir deles, a gente compreende que o racismo é um sistema que organiza relações na sociedade brasileira. Um sistema que foi produzido na longa duração da história e que, por ser um sistema, impacta diferentes dimensões da vida da sociedade brasileira. Ele impacta o funcionamento das instituições de saúde, das instituições de Justiça, das instituições do mundo do trabalho e das escolas. É importante dizer isso para não acharmos que o racismo aparece só na escola. Ele aparece também na escola, mas está presente nas diferentes instituições. E, como um sistema, o racismo se manifesta nas práticas cotidianas, nas relações ordinárias. Ele não é um dado extraordinário. O racismo é um dado cotidiano e ordinário da sociedade brasileira. 

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Quando acontece um caso como esse [da filha de Samara Felippo], enxergamos uma manifestação extraordinária — porque envolve a mídia e um colégio com um nome e tradição importantes —, mas todos os dias acontecem situações como essa em diferentes escolas públicas e privadas do Brasil. Tornar esse caso presente na mídia nos faz enxergar uma realidade mais ampla, que diz respeito à prevalência do racismo no funcionamento regular das diferentes escolas brasileiras. Evidentemente, quando um caso como esse vai para os holofotes, temos uma oportunidade de diálogo — um diálogo pedagógico, um diálogo de fortalecimento de uma visão antirracista, um diálogo que permite superar certas compreensões ingênuas sobre o racismo na sociedade brasileira —, mas ressalto: o que esse caso revela é que o racismo é um dado ordinário da sociedade brasileira. O racismo programa nossos comportamentos, interações e o modo como reagimos aos acontecimentos cotidianos, e tem uma incidência poderosa sobre as microrrelações do dia a dia. Nem sempre os sujeitos que praticam ações de natureza racista vão perceber que estão praticando essas ações ou vão identificar que se trata de uma violência, de uma prática que desqualifica e desumaniza o outro. Por ser um sistema, o racismo se naturaliza no cotidiano e é visto como um dado incontornável e natural das nossas instituições. 

A [escritora e intelectual] Sueli Carneiro nos lembra que um dos efeitos do racismo, e uma das formas como ele se reproduz e se perpetua, tem a ver com a desumanização das pessoas negras, com a retirada dessas pessoas do lugar de dignidade e de humanidade que todos nós precisamos ter para viver em sociedade. Ao fazer isso, o ato racista não é lido como uma violência — porque, se desumanizei o outro, e esse outro não tem o mesmo lugar de dignidade da pessoa humana que tenho, não se trata de uma violência contra alguém. Isso é importante que se diga. A desumanização das pessoas negras que o racismo impõe e reproduz diariamente permite que certas violências sejam vivenciadas pelas pessoas negras e naturalizadas na sociedade. Isso está muito evidente no caso que a gente está discutindo. 

É muito difícil enfrentar, criticar e superar o racismo se não houver um compromisso consistente de quem organiza as instituições. É por isso que precisamos estar atentos a essas manifestações cotidianas — porque, caso a gente não tenha uma perspectiva intencional para identificar e combater essas situações, se a gente permitir que as relações estabelecidas na sociedade brasileira não sejam alvo de reflexão e crítica, o que vai acontecer todo dia é o que a gente viu acontecer na Escola Vera Cruz. 

Como as escolas podem abordar problemas como esse com a criança que é vítima? E como abordar com os alunos responsáveis pelos comentários ou ações racistas? 

ALEXSANDRO SANTOS Como o racismo é um sistema que estrutura relações na sociedade brasileira, o trabalho que a escola precisa fazer para enfrentá-lo também precisa ser sistêmico e estrutural. Não dá para as nossas escolas continuarem trabalhando o enfrentamento ao racismo numa perspectiva episódica — só nas datas comemorativas, ou só quando acontece um grande trauma, como é esse caso. Se continuarmos trabalhando numa perspectiva episódica de enfrentamento ao racismo, dificilmente seremos capazes de acolher adequadamente as crianças que são vítimas dessas situações e atuar pedagogicamente para que aquelas que praticam atos racistas compreendam que isso é uma violência e não pode acontecer, sob pena de corromper a dignidade da pessoa humana, corromper as relações sociais que vivemos no nosso dia a dia. 

É importante que o trabalho de enfrentamento ao racismo de maneira sistêmica seja um trabalho permanente de reeducação das relações raciais no Brasil. É preciso que diariamente a escola expresse, nas suas práticas pedagógicas e no modo como ela organiza as atividades, um processo de reeducação das relações étnico-raciais, como nos ensinou a professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva nas diretrizes curriculares para implementação da história e cultura africana e afro-brasileira no currículo, que está na lei nº 10.639. A escola deve ser um espaço seguro para que a criança vítima de situações de racismo seja acolhida e cuidada na dor que está sentindo, expresse o que viveu e, com a ajuda de seus professores, dos colegas e dos profissionais que trabalham na escola, entenda uma situação de violência racial, dê um nome a essa situação e elabore esse ato de violência a partir de uma perspectiva que permita que ela se cure e obtenha reparação.

A criança que comete uma agressão marcada pelo racismo também precisa de um processo de reeducação que permita que ela compreenda o que fez, dê um nome para aquilo e reorganize seus comportamentos. Isso vai exigir, por parte da escola, um trabalho explícito de intervenção. É preciso que haja decisões da professora e da equipe gestora que demonstrem para essa criança que ela cruzou uma linha do ponto de vista das relações sociais, justas e equitativas que desejamos. É preciso que ela entenda que reproduziu um sistema de opressão a partir de seu comportamento e produziu dano e sofrimento em outra pessoa. É preciso que ela seja orientada sobre como ela pode reparar o dano que causou na relação com a outra criança.

FOTO: Carla Carniel/REUTERS 18/10/2021Alunos assistem a aula no primeiro dia de aulas recuperando a capacidade total desde o início da pandemia da doença por coronavírus (COVID-19), em São Paulo, Brasil 18 de outubro de 2021.

Alunos assistem a aula no primeiro dia de aulas recuperando a capacidade total desde o início da pandemia de covid-19, em São Paulo, em 18 de outubro de 2021.

Isso implica, claro, que a escola tenha protocolos adequados para tratar situações de conflito e violência racial que se manifestam no cotidiano. Achar que não vai acontecer uma situação de conflito racial, achar que na escola em que eu trabalho não vai acontecer violência racial é parte do problema que permite que o racismo siga se reproduzindo nas nossas relações educativas. 

Samara Felippo pediu a expulsão das colegas que foram racistas com sua filha. Esse tipo de medida é necessária? Como a avalia? 

ALEXSANDRO SANTOS Não vou discutir o caso específico que aconteceu na Escola Vera Cruz, porque quem tem os dados e informações detalhadas desse caso são a escola e as famílias. São eles que conseguem entender exatamente o que aconteceu e tomar as medidas cabíveis. Mas o que é importante dizer é que, a rigor, no Brasil, não existe a possibilidade de expulsar um aluno ou aluna da educação básica, porque a expulsão significaria que ele estaria fora do sistema escolar. Não é disso que se trata. A educação básica é um direito público e subjetivo, que não pode ser negado. O que imagino que esteja sendo proposto é a transferência negociada dessas estudantes que praticaram essa violência para outra escola — e isso é algo que acontece todos os dias nas escolas brasileiras. 

Penso que a transferência negociada das duas alunas que praticaram a agressão pode ser muito favorável tanto para criança que foi vítima da violência racial quanto para as que cometeram a agressão. Para a vítima, haverá a possibilidade de viver o ambiente escolar sem ter que reencontrar suas agressoras e enfrentar a reconstrução dolorosa dessas relações. Ela será protegida de ser revitimizada com a situação de violência que sofreu. Para as crianças que praticaram a agressão, também é uma oportunidade, numa outra escola, de reconstruir relações sociais que ficaram comprometidas depois que o caso veio à tona e repensar seus comportamentos e práticas a partir de outro ambiente institucional. 

A transferência também pode ser um sinal bastante pedagógico sobre o que a escola considera inaceitável, [passando] uma mensagem do que se espera dos comportamentos naquele ambiente. A ideia de não haver qualquer consequência para as crianças que praticaram a agressão é muito ruim e precisa ser afastada. É preciso que se estabeleçam consequências claras e objetivas para esses atos de agressão, para que eles sejam interpretados como fora do aceitável, como fora daquilo que é desejável na relação cotidiana entre os estudantes. 

A atriz também foi à polícia depois do episódio, já que racismo é crime. Uma penalização do caso pode ser educativa? Ou isso contrasta com as mediações da infância e adolescência?

ALEXSANDRO SANTOS É fundamental que todos os casos de violência racial sejam comunicados, sim, às autoridades policiais, mesmo que sejam praticados por crianças e adolescentes. Obviamente, a autoridade policial tratará essas violências a partir das regras do sistema jurídico brasileiro, que conferem às crianças e adolescentes um tratamento diferente daquele que praticamos com os adultos que cometem crimes. As crianças e adolescentes serão tratadas pela autoridade policial a partir das regras do Estatuto da Criança e do Adolescente, e caberá à autoridade policial interpretar a conduta e estabelecer qual é o procedimento que melhor se aplica, a partir da análise do caso objetivo. É muito importante, portanto, procurar a autoridade policial. É parte do processo de reeducação das relações sociais no Brasil. 

FOTO: Pilar Olivares/Reuters - 14.fev.2022Três crianças negras, usando máscara de proteção contra a covid-19, estão em pé, uma atrás da outra. Uma delas, uma menina, no meio, olha para a câmera. O fotógrafo as vê através de uma porta aberta em uma escola com paredes coloridas.

Crianças em fila para receber dose da vacina contra a covid-19 em escola no Rio de Janeiro

Comunicar [o crime] à autoridade policial também ajuda a enfrentar outro problema da sociedade brasileira, que é a subnotificação de casos de violência racial. Justamente porque o racismo é um dado estrutural, sistêmico, muitas violências são tão naturalizadas que sequer chegam ao conhecimento da autoridade policial. Quando Samara Felippo procura a delegacia e relata a ocorrência, ela nos ajuda a enfrentar esse problema da subnotificação. 

O racismo não é um problema individual. A escola deve levar casos como esse para a turma toda? Como fazer isso?

ALEXSANDRO SANTOS De fato, o racismo não é um problema individual. Ele se manifesta nas relações sociais a partir de uma matriz que organiza a sociedade brasileira, que pressupõe que as pessoas negras não têm o mesmo status de humanidade que as pessoas não negras ou que estão na sociedade brasileira para servir aos interesses das pessoas não negras. É preciso, então, que a gente entenda que, se [o racismo] é uma realidade estrutural e sistêmica, o enfrentamento ao racismo também precisa ser estrutural e sistêmico. Ele precisa perpassar todas as relações, seja no ambiente de trabalho, na família, no ambiente religioso ou na escola. A todo momento, é preciso visibilizar o problema das relações raciais no Brasil e propor a reeducação dessas relações sociais a partir de um trabalho intencional.

O colégio onde a filha de Samara Felippo estuda diz ter um projeto antirracista. Como devem ser esses projetos para que casos como o dela não se repitam? 

ALEXSANDRO SANTOS É importante reafirmar que o enfrentamento ao racismo e às consequências que ele impõe ao cotidiano escolar não será eficaz se for pensado numa lógica de “projeto especial” ou de ação excepcional, como uma espécie de concessão do currículo a uma pauta exógena a ele. Conheço um pouco da trajetória de reflexão e das ações do Colégio Vera Cruz e percebo uma vontade sincera de praticar uma educação atenta à equidade racial. Entretanto, talvez seja necessário avançar, com mais ousadia, no processo de reorientação curricular e fortalecer a institucionalização de protocolos explícitos para a identificação e tratamento dos conflitos raciais, bem como a modelagem de procedimentos de reparação e restauração. 

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