ESPECIAL
‘O Segundo Sexo’:
dúvidas e os porquês sobre
o que é ser mulher
Por Laila Mouallem, Jessica Oliveira, e Guilherme
Falcão
em 5 de maio de 2019
Obra mais conhecida de Simone de Beauvoir completa 70 anos em 2019. Entenda o que há nos dois volumes do livro e ouça 4 especialistas sobre a atualidade de seu conteúdo
Entre maio e outubro de 1949, Simone de Beauvoir (1908-1986) publicou, em dois volumes, a primeira edição de “O Segundo Sexo” – obra que estabeleceu uma importante base teórica para os debates e as ações políticas feministas das décadas seguintes.
O livro foi uma empreitada ambiciosa da escritora e filósofa francesa. Ela deixou de lado seus projetos de “confissão pessoal” e buscou abordar a “condição feminina em sua generalidade”, como a própria autora conta em “A força das coisas”, livro de sua tetralogia de memórias.
Autora prolífica de romances e novelas, Beauvoir produz, com “O Segundo Sexo”, uma obra de não ficção: uma extensa e densa pesquisa sobre a mulher em si – interrogando os espaços que ocupou nos diferentes momentos históricos e o que é, e foi, ser uma mulher.
O título do livro de certa forma sintetiza as respostas que encontrou para essas perguntas: o “segundo sexo” é a mulher; “o primeiro sexo” é o homem.
“A humanidade é masculina, o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo. (...) A mulher não é senão o que o homem deseja que ela seja”
Simone de Beauvoir
na introdução de “O
Segundo Sexo”
Beauvoir recorre a diferentes disciplinas para compreender os mitos construídos em torno da figura feminina e analisar fases, estereótipos e caminhos possíveis da vida de uma mulher – a infância, a velhice, a iniciação sexual, a homossexualidade, a prostituição, a maternidade, o casamento, entre outros.
“Baseada em rigorosa pesquisa acadêmica, a obra avançou teses inovadoras: atacou violentamente a ordem sexual dominante, pregou a liberalização da contracepção e do aborto, reabilitou a homossexualidade feminina, denunciou a violência nas relações entre gêneros e desmontou os mitos do instinto materno, da feminilidade e da maternidade. Foi a primeira vez que uma mulher reivindicou seus direitos através de um livro dessa forma”, escreve a historiadora Mary del Priore em edição comemorativa da obra, publicada pela editora Nova Fronteira em março de 2019.
A publicação e a recepção
Trechos de “O Segundo Sexo” saíram pela primeira vez, entre maio e julho de 1948, na francesa Les Temps Modernes, influente revista literária no período pós-Segunda Guerra Mundial. A obra de Beauvoir foi amplamente criticada, tanto por grupos de direita como de esquerda, ambos conservadores do ponto de vista moral. “O Segundo Sexo” foi colocado na lista de livros proibidos do Vaticano. Ainda assim, teve uma ampla disseminação logo de início: mais de 22 mil exemplares foram vendidos na primeira semana de lançamento, de acordo com Del Priore.
A revista Les Temps Modernes foi criada e dirigida pelo filósofo Jean Paul Sartre e contava com Beauvoir no conselho editorial, ao lado de outros nomes de destaque na cena intelectual europeia e mundial, Raymond Aron e Maurice Merleau-Ponty. Beauvoir, assim como Sartre, era existencialista. O fato de pertencer a essa linha filosófica que floresceu no século 20 é importante para entender como ela pensa a mulher e questiona as dimensões de sua existência em si.
Nas palavras de Beauvoir, ser existencialista “não se trata de se perguntar se sua presença no mundo é útil, se a vida vale a pena ser vivida – aí estão questões desprovidas de sentido –, trata-se de saber se ele quer viver e em que condições”. A autenticidade e a liberdade defendidas por Beauvoir no livro são valores éticos que ela extrai do pensamento existencialista.
O movimento feminista
“O Segundo Sexo” é considerado um importante ponto de partida para o surgimento da segunda onda do feminismo, que teve início na década de 1960 nos Estados Unidos e estava ligada ao contexto dos movimentos políticos da contracultura de maio de 1968 na França. No Brasil, iniciou-se nos anos 1970, em meio a movimentos pela redemocratização do país.
A primeira onda do movimento feminista tem suas bases ainda no século 18, com as revoluções Francesa e Americana. A sua consolidação se dá ao longo do século 19 e na primeira metade do século 20, com conquistas de direitos civis. Um marco da primeira onda são as sufragistas, que reivindicavam o direito ao voto e participação política para mulheres.
A segunda onda do movimento feminista ampliou o debate em torno de uma série de temas. O conceito de gênero, o papel desempenhado pela mulher no núcleo familiar, as atribuições decorrentes da maternidade, a sexualidade, o mercado de trabalho, os direitos reprodutivos e a violência doméstica são exemplos das principais pautas em discussão. Essas reivindicações dos anos 1960 e 1970 foram ao encontro dos tópicos levantados de forma precursora por Beauvoir, décadas antes, em seu livro de 1949.
O Nexo organizou algumas das principais ideias expostas por Beauvoir nos volumes 1 (“Fatos e Mitos”) e 2 (“A Experiência Vivida”) de “O Segundo Sexo”. E entrevistou quatro especialistas para entender as pontes da obra de 1949 com o presente, em 2019:
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Carla Rodrigues, professora de filosofia e pesquisadora da Faperj
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Jaqueline Gomes de Jesus, professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro e autora do livro “Transfeminismo: Teorias e Práticas”
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Magda Guadalupe dos Santos, professora da PUC-Minas e da Faculdade de Educação da UEMG
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Mirian Goldenberg, antropóloga, professora titular da UFRJ e autora dos livros “A bela velhice” e “Toda mulher é meio Leila Diniz”
O movimento feminista, com seus avanços e recuos, está, hoje, na pauta da política, da mídia, das organizações da sociedade civil, dos movimentos sociais, do meio acadêmico. Está no centro do debate público. E “O Segundo Sexo” segue atual nesse contexto: Beauvoir continua uma autora de referência ainda em 2019 – como mostram as entrevistadas, nos trechos de áudio que você pode ouvir abaixo ao longo deste especial.
‘Fatos e Mitos’
A biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher é o Outro? Trata-se de saber como a natureza foi nela revista através da história; trata-se de saber o que a humanidade fez da fêmea humana.
“Destino” é o nome do primeiro capítulo de “O Segundo Sexo”. A escolha de Beauvoir em começar dessa forma é importante: o objetivo é, logo de início, investigar e questionar teorias que sugerem um percurso pré-determinado à vida da mulher. Ela começa a análise pela biologia, passa pela psicanálise e termina no materialismo histórico de Karl Marx e Friedrich Engels. A autora critica a forma como todos eles enxergam e analisam o papel da mulher.
Beauvoir reconhece as diferenças físicas que existem entre homens e mulheres: do desenvolvimento muscular inferior feminino até as dificuldades enfrentadas na gravidez e com a menstruação. Mas, ao comparar mulheres com outras fêmeas mamíferos, ressalta que esses fatores têm um peso muito maior na vida das mulheres. Para Beauvoir, isso se dá porque significados e valores são atribuídos às características fisiológicas da mulher, criando costumes e contextos.
“A ‘fraqueza’ só se revela como tal à luz dos fins que o homem se propõe, dos instrumentos de que dispõe, das leis que se impõe”, escreve. Para Beauvoir, quando a força física, por exemplo, não é algo necessário para o sucesso de alguma atividade, as diferenças não importam. “Onde os costumes proíbem a violência, a energia muscular não pode alicerçar um domínio: é preciso que haja referências existenciais, econômicas e morais para que a noção de fraqueza possa ser concretamente definida.”
Um exemplo dado por Beauvoir: para outras espécies de animais, a relação entre vida e maternidade se dá a partir do ciclo do cio e das estações; no caso da mulher, isso é determinado pela sociedade em que ela se insere. Segundo a filósofa, as “possibilidades” individuais de qual vida seguir dependem de fatores como a economia, a política, leis, tabus.
“O que recusamos é a ideia de que [os dados da biologia] constituem um destino imutável para ela. Não bastam para definir uma hierarquia dos sexos; não explicam por que a mulher é o Outro; não a condenam a conservar para sempre essa condição subordinada”, conclui.
As mulheres não são apenas um útero procriativo
Toda a história das mulheres foi feita pelos homens.
A segunda parte do primeiro volume de “O Segundo Sexo” chama-se “História”. Definidas algumas bases para entender de onde vem a noção de que a mulher é “o segundo sexo”, Beauvoir busca investigar como isso se deu e consolidou ao longo do tempo.
Beauvoir revisita momentos chave desde a Pré-história e a Antiguidade, desde a criação dos códigos religiosos por lideranças masculinas, a prevalência de regimes monárquicos até a definição do papel da herança para a unidade familiar. Chega ao Renascimento, à Revolução Francesa e à Revolução Industrial, e vai até o ponto do qual escreve: o final dos anos 1940.
A filósofa francesa menciona narrativas do historiador grego do século 5 a.C. Heródoto e descrições sobre amazonas de Daomé – exército de mulheres que atuou na África no século 19 –, segundo as quais mulheres estiveram na linha de frente em guerras em momentos históricos distintos. “Mostravam nessas ocasiões a mesma coragem e a mesma crueldade dos homens”, escreve.
Porém, mesmo com histórias de mulheres que lutaram junto a homens, como as amazonas, e de mulheres que quase não sofreram o peso da desigualdade, como as espartanas, a filósofa francesa conclui: “O mundo sempre pertenceu aos machos” nos valores, nos costumes e nas conquistas materiais.
Segundo o livro, as amazonas de Daomé, por exemplo, apesar de fazerem parte de um exército composto por mulheres, sentiam a necessidade de mudar seu corpo para serem respeitadas: há relatos de mutilação de seus próprios seios. A capacidade reprodutiva, nas palavras de Beauvoir, representava um “handicap” (uma deficiência, em tradução livre).
São também analisadas sociedades como a egípcia e a babilônica, em que a mulher podia ocupar um espaço de prestígio – mas a partir da figura da divindade. Para a filósofa, essa “idade de ouro” da história é um mito: não havia uma relação de reciprocidade entre homens e mulheres. A mulher em si era um tabu, como outros seres sagrados. “A sociedade sempre foi masculina; o poder público, a autoridade pública e social sempre esteve nas mãos dos homens”, escreve.
O mercado de trabalho e a maternidade
Um ponto importante nesse raciocínio é quando Beauvoir aborda a introdução das mulheres no mercado de trabalho, em decorrência da Revolução Industrial a partir dos séculos 18 e 19. Ela retoma registros que demonstram que mulheres estavam submetidas a condições muito precárias de trabalho em razão de seu gênero.
O livro apresenta os baixíssimos números de trabalhadoras vinculadas a sindicatos no início do século 20 como um sinal de uma “tradição de resignação e submissão”. Para a filósofa, tratava-se de “uma falta de solidariedade e de consciência coletiva”, que deixava as mulheres “desarmadas” diante das novas possibilidades no mercado de trabalho que surgiam para elas naquele momento.
Beauvoir questiona o fato de mulheres terem que equilibrar rotinas pesadas e insalubres de trabalho com a ocupação doméstica e a maternidade. Aborda a importância do desenvolvimento de métodos contraceptivos e políticas de controle de natalidade também para a dissociação entre o que define como a “função sexual” e a “função reprodutora” da mulher. E inicia a sua argumentação em prol da legalização do aborto. Ela menciona casos na história antiga em que o feto era visto como parte do corpo da mulher e o aborto era uma prática comum. E então escreve sobre a mudança de perspectiva moral com a ascensão do cristianismo, que atribui uma alma ao embrião.
No momento em que Beauvoir escreve ”O Segundo Sexo”, o aborto legal não era permitido em nenhuma parte do mundo. Na França, o aborto foi legalizado décadas depois, em 1975. Beauvoir foi uma figura central nesse processo. Ela foi a redatora do “Manifesto 343”, que teve grande repercussão dentro e fora da França. Foi assinado por 343 mulheres que afirmavam publicamente já terem feito um aborto. Eram nomes como o da atriz Catherine Deneuve, da diretora de teatro e cinema Ariane Mnouchkine, da atriz Jeanne Moreau e da romancista Marguerite Duras.
“Um milhão de mulheres na França têm um aborto a cada ano. Condenado ao sigilo, eles têm acontecido em condições perigosas, sendo que este procedimento, quando realizado sob supervisão médica, é um dos mais simples. Essas mulheres são veladas em silêncio. Eu declaro que sou uma delas. Eu tive um aborto. Assim como nós exigimos o acesso livre a contraceptivos, exigimos a liberdade de ter um aborto”, diz o manifesto escrito por Beauvoir.
Em “O Segundo Sexo”, um grande foco de estudo – e crítica – de Beauvoir é também o processo em torno da maternidade em si. Ela elogia progressos da obstetrícia, a criação de anestesias e a possibilidade de se fazer inseminações artificiais. “Essas modificações têm, para a mulher em particular, imensa importância; podem diminuir o número de períodos de gravidez e integrá-la racionalmente em sua vida, em vez de permanecer escrava desta.”
Muito do que foi construído pelas mulheres foi colocado como iniciativa dos homens
Em conjunto, elas [as mulheres] ainda se encontram em situação de vassalas. Disso decorre que a mulher se conhece e se escolhe, não tal como existe para si, mas tal qual o homem a define. Cumpre-nos, portanto, descrevê-la primeiramente como os homens a sonham, desde que seu ser-para-os-homens é um dos elementos centrais de sua condição concreta.
No trecho acima, do capítulo “Os mitos”, Beauvoir fala sobre o peso que os padrões idealizados para as mulheres têm, na prática, em suas oportunidades na sociedade. Ela evoca, por exemplo, a figura de Adão e Eva e da Virgem Maria na religião cristã. Na perspectiva da filósofa, a mulher seria, ao mesmo tempo, figuras opostas: propulsora do pecado original e uma mulher virgem, mãe de Jesus Cristo.
“Elas [as mulheres] não possuem nem religião, nem poesia que lhes pertençam exclusivamente, é ainda através dos sonhos dos homens que elas sonham. São os deuses fabricados pelos homens que elas adoram”, escreve.
Beauvoir aborda questões como a menstruação, que fez mulheres serem vistas como impuras em diferentes sociedades e períodos históricos. Ela traz um exemplo de 1878, quando um membro da Associação de Medicina Britânica afirmou: “É indubitável que a carne se corrompe quando tocada pela mulher no período das regras [de menstruação]”.
O sangue que pode ser decorrente do rompimento do hímen também é mencionado por Beauvoir como um mito determinante na situação da mulher. O hímen, que pode ou não ser rompido no ato sexual de penetração do pênis na vagina, foi tomado como um símbolo de dominação e posse do homem sobre a mulher, sobre a noção de virgindade. Há casos, segundo Beauvoir, de comunidades em que o lençol com a mancha de sangue era exibido pelo homem como sinal de orgulho, prestígio.
Para a filósofa, esses mitos reforçam a ideia de que a mulher nunca é exatamente o que deveria ser, o que é esperado dela: “Ela é perpétua decepção”.
‘A Experiência Vivida’
Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.
A mais conhecida frase de “O Segundo Sexo”, abre o capítulo “Formação”, do segundo volume da obra. Nesse momento, a filósofa toma o início da vida da mulher como objeto de estudo: a infância, a juventude, a iniciação sexual e a descoberta da homossexualidade.
A ideia que Beauvoir apresenta aqui é a de que não há um destino biológico, psíquico ou econômico responsável pelas características que constituem o que é ser uma mulher. “Ser mulher” – a noção de feminilidade, as responsabilidades morais e práticas, os padrões – é determinado a partir de valores e costumes. Algo que Beauvoir chama de “conjunto da civilização”.
O pensamento de Beauvoir foi fundamental para o fortalecimento desse olhar revolucionário
A infância
“Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo.” Beauvoir analisa, então, os diferentes tipos de influência a que estão submetidos meninas e meninos.
Meninos desde cedo têm o reconhecimento de suas partes genitais incentivado. “Em certo sentido, a menina não tem sexo”. A menina percebe logo que está em um lugar diferente do menino – e, segundo Beauvoir, um conjunto de fatores pode levá-la a ver essas diferenças como sinais de inferioridade.
Diferentemente do menino, para a menina há um conflito entre a imagem que tem de si e a sua vontade em levar projetos próprios adiante. Isso se dá, segundo Beauvoir, por sua autonomia não ser tão incentivada quanto no caso dos homens e existirem exigências quanto ao papel social da mulher a serem cumpridas, mesmo que isso aconteça de forma inconsciente. “Hoje, graças às conquistas do feminismo, torna-se dia a dia mais normal encorajá-la a estudar, a praticar esporte; mas perdoam-lhe mais facilmente do que ao menino o fato de fracassar; tornam-lhe mais difícil o êxito, exigindo dela outro tipo de realização: querem, pelo menos, que ela seja também uma mulher, que não perca sua feminilidade.”
Beauvoir procura quebrar a ideia de que meninas são mais precoces que meninos – na verdade, atividades da fase adulta são atribuídas a elas ainda quando são jovens. As meninas estão mais próximas do trabalho doméstico desde cedo, ao acompanhar o que é feito pela mãe e serem incentivadas a contribuir para essas atividades e adquirir essas responsabilidades.
“Um homem especializado em seu ofício acha-se separado da fase infantil por anos de aprendizado; as atividades paternas são profundamente misteriosas para o menino”, diz. Isso não se dá em relação à imagem e às atividades da mãe, desde cedo acessíveis para a filha.
A iniciação sexual
Outra relação de desigualdade apresentada pela filósofa é em relação à descoberta da sexualidade na puberdade. Para a menina, falar ou entender sobre sexo é muitas vezes motivo de culpa, vergonha, erro – enquanto meninos são incentivados a falarem de forma orgulhosa sobre seus impulsos eróticos.
Beauvoir escreve de forma direta e explícita sobre a masturbação feminina, e as diferenças entre o processo de entendimento da mulher de suas zonas eróticas, clitoridiana e vaginal. Ressalta as dificuldades da iniciação erótica da mulher – resistências herdadas, com frequência, de sua infância ou juventude. “Uma educação severa, o medo do pecado, o sentimento de culpabilidade em relação à mãe criam barreiras poderosas. A virgindade é tão valorizada em muitos meios que perdê-la fora do casamento legítimo parece um verdadeiro desastre”, exemplifica. Ela acrescenta que essa relação também carrega a preocupação em ter um filho fora do casamento, de ser uma “mãe solteira” e carregar possíveis consequências do ato sexual só.
Beauvoir trata ainda da questão do consentimento e da violência no ato sexual em si, assunto muito discutido nas pautas feministas 70 anos depois. “O coito não poderia ser realizado sem o consentimento do macho, e é a sua satisfação que constitui o fim natural do ato. A fecundação pode realizar-se sem que mulher sinta o menor prazer.”
Quando pergunto para homens o que mais invejam nas mulheres, eles respondem: simplesmente nada
A lésbica
Quando aborda a formação da mulher, Beauvoir inclui também uma reflexão sobre a homossexualidade feminina. A filósofa entende a relação entre mulheres lésbicas como mais sinceras, “não consagradas por uma instituição ou pelos costumes” como as relações heterossexuais. Para Beauvoir, há uma “ternura carnal mais igual, mais contínua”.
A autora viveu relações homossexuais ao longo de grande parte de sua vida. Durante muito tempo, porém, biografias feitas sobre ela retrataram uma Beauvoir heterossexual, destacando seu relacionamento duradouro com Sartre e o caso que teve com o romancista Nelson Algren.
A partir dos anos 1990, quando diários e cartas foram publicados, artigos sobre a orientação sexual de Beauvoir começaram a aparecer. Beauvoir narrou diversas relações com mulheres. Descreve, por exemplo, uma relação ambígua com uma garota de sua escola, chamada nos escritos de “Zaza”; relações que teve aos 20 anos com estudantes de suas aulas de filosofia; e um relacionamento mais longo, até o fim da vida, com a romancista e professora de filosofia Sylvie Le Bon.
Nenhum desses casos, porém, eram tratados publicamente como relações homossexuais por Beauvoir. Ela não menciona relações sexuais e amorosas com mulheres em nenhum de seus quatro livros de memórias.
Segundo os escritos de seus diários, houve um episódio em que Beauvoir foi demitida de um emprego como professora durante a ocupação nazista na França (1940 - 1944) por “corromper a moral” de uma estudante.
Beauvoir afirmava em diários temer ser enquadrada como uma “lésbica de ambos os sexos”, mas não chega a mencionar o termo “bissexual”, que passa a ser mais disseminado para definir a orientação sexual de quem se atrai por homens e mulheres a partir da segunda metade do século 20.
Em parte devido às suas próprias experiências, Beauvoir traz em seu texto a quebra de estereótipos que associam a homossexualidade feminina à reprodução de padrões de masculinidade ou ao uso de símbolos de vestimenta e atitude associados aos homens.
Há autores que criticam Beauvoir por colocar a homossexualidade feminina como uma escolha e por ainda disseminar alguns preconceitos sobre a mulher lésbica.
(...) a liberdade se encontra inteira em cada um. Somente como permanece abstrata e vazia na mulher, esta só poderia assumir-se autenticamente na revolta; é o único caminho aberto aos que não têm a possibilidade de construir o que quer que seja; cumpre-lhes recusar os limites de sua situação e procurar abrir para si os caminhos do futuro; não há, para a mulher, outra saída senão a de trabalhar pela sua libertação.
Depois de estudar alguns dos fatores que atuam na formação de uma mulher, Beauvoir chega a uma fase temporalmente mais avançada, a qual chama de “situação”: são as posições de esposa, mãe, prostituta e idosa.
Todas as situações em que as mulheres estavam eram de opressão e falta de direitos
A esposa
Ao falar sobre a mulher no matrimônio, a filósofa lê essa vivência de uma forma ampla: da intimidade às tarefas cotidianas. Ela critica tabus em torno da sexualidade conjugal, por exemplo, que pode ser construída a partir de valores morais da instituição casamento e por isso nem sempre ser uma atividade de fato livre e prazerosa.
Ela explora mais a fundo a figura da dona de casa. As tarefas domésticas, que tomam boa parte da rotina, não são em si duradouras. Nesse ponto, Beauvoir afirma: não importa quanto cuidado a mulher tenha empenhado naquela tarefa, ela sempre será desfeita. “Contemplando o bolo que tira do forno, ela suspira: é realmente uma pena comê-lo! É realmente uma pena que o marido e os filhos arrastem os pés enlameados pelo assoalho encerado. Logo que as coisas servem, sujam-se ou se destroem.”
A casa, o quarto, a roupa suja – a única coisa que a mulher pode fazer, segundo Beauvoir, é retirar o que se introduz de ruim nesses objetos, como manchas, poeira, sujeira. “É um triste destino ter de rechaçar continuamente um inimigo, ao invés de se voltar para metas positivas.” A solidão, o vazio e a frustração são alguns dos sentimentos decorrentes dessa ocupação da mulher apresentados no livro.
Apesar do peso que o casamento pode representar na vida de uma mulher, Beauvoir não entende uma vida conjugal equilibrada como algo impossível. “Numerosos matizes são possíveis nas relações de um homem com uma mulher: na camaradagem, no prazer, na confiança, na ternura, na cumplicidade, no amor, podem ser um para o outro a mais fecunda fonte de alegria, de riqueza, de força que se propõe a um ser humano”, diz. Mas, para ela, é necessário que haja o desenvolvimento das duas partes individualmente, e que a partir disso se constituam laços e um reconhecimento mútuo das liberdades de cada um.
Beauvoir teve muitas relações ao longo da vida, nunca se casou e nem teve filhos. Sartre, com quem Beauvoir manteve o relacionamento amoroso mais duradouro, chegou a pedi-la em casamento, mas ela negou. Eles viveram sempre fisicamente separados, primeiro em diferentes cidades, depois em hotéis diferentes em Paris. Nos anos 1950, Beauvoir comprou seu apartamento, onde ela morou pelo resto da vida.
Esse arranjo de relacionamento deu a Beauvoir uma vida mais independente, com espaço para que mantivesse relações com outras pessoas e se dedicasse a escrever e dar aulas. Beauvoir construiu uma trajetória diferente de sua mãe, que viveu em função de trabalhos domésticos e da vida das filhas, e chegou a ser vítima de violência doméstica.
A mãe
Quando aborda a figura materna, Beauvoir escolhe falar com veemência sobre aborto. Nesse momento, evoca uma argumentação que ainda hoje é utilizada por quem defende a legalização do aborto: trata-se de algo que já é feito na clandestinidade, independentemente da proibição, trazendo riscos à saúde da mulher.
Beauvoir também discute a existência de um recorte de classe: mulheres ricas teriam mais acesso e informação sobre práticas anticoncepcionais seguras, mais infraestrutura de higiene para empenhar esses métodos e mais condições financeiras para lidar com uma gravidez indesejada.
Para que a maternidade não represente um peso na vida da mulher e para que se possa assumir livremente essa condição, Beauvoir defende a necessidade de uma política de controle de natalidade e o aborto legal.
A prostituta
O casamento, para Beauvoir, tem uma relação muito próxima com a prostituição. “Por prudência, o homem obriga a esposa à castidade, mas não se satisfaz com o regime que lhe impõe.” Tanto a esposa como a prostituta ocupam posições simétricas do ponto de vista econômico. “Para ambas, o ato sexual é um serviço”, afirma.
Ou seja, enquanto a esposa, que executa um contrato de “deveres conjugais”, “é contratada a vida inteira por um só homem”, a prostituta “tem vários clientes que lhe pagam por vez”.
Há diferenças importantes, porém: a mulher casada, considerada legítima, é respeitada como pessoa humana, enquanto a prostituta não é. “A prostituta não tem os direitos de uma pessoa; nela se resumem, ao mesmo tempo, todas as figuras da escravidão feminina.”
Da maturidade à velhice
A velhice, a mudança do corpo da mulher com a menopausa e o olhar que a mulher tem de si mesma nessa fase da vida podem constituir um momento difícil e decisivo, segundo Beauvoir, mas também de libertação.
É possível que a mulher que ao longo da vida olhou mais para os outros do que para si, nesse momento, tenha uma revelação, uma percepção sobre suas vontades que não cumpriu, sobre a liberdade que não teve. “Desalojada de seus retiros, arrancada a seus projetos, acha-se colocada subitamente, sem ter para que apelar, em face de si mesma. Ultrapassado este marco contra o qual se chocou sem esperar, parece-lhe que não faz senão sobreviver a si mesma; seu corpo será sem promessa; os sonhos, os desejos que não realizou permanecerão para sempre insatisfeitos”, escreve. É sob essa perspectiva que se volta ao passado e sente o peso das limitações que teve ao longo de sua vida.
Beauvoir diz que todos nós somos cúmplices dessa situação: velho não é o outro, velho sou eu
É quando for abolida a escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia que implica, que a “divisão” da humanidade revelará sua significação autêntica e que o casal humano encontrará sua forma verdadeira.
Beauvoir conclui “O Segundo Sexo” com um capítulo chamado “A caminho da libertação”. A autora descreve um processo de emancipação da mulher que envolve diversas variáveis.
Ela narra o momento histórico no qual se encontra: “O código francês [Código Civil Francês, em vigor no século 19] não mais inclui a obediência entre os deveres da esposa e toda cidadã tornou-se eleitora”. Mas essas liberdades civis permanecem abstratas, segundo Beauvoir, quando não vêm com a autonomia econômica da mulher. “A mulher sustentada – esposa ou cortesã – não se liberta do homem por ter na mão uma cédula de voto.”
Se não fosse Beauvoir, talvez tivesse seguido o caminho mais tradicional para uma mulher da minha geração, e não me sentisse tão livre, feliz e realizada
“Não se deve entretanto acreditar que a simples justaposição do direito de voto a um ofício constitua uma perfeita liberação: hoje o trabalho não é a liberdade”, escreve Beauvoir. Ela faz referência a questões como a precariedade do trabalho feminino, os baixíssimos salários, o trabalho extra que a mulher deve desempenhar em casa, os padrões estéticos exigidos socialmente de uma mulher que não ganha o suficiente para sustentá-los.
A mudança, portanto, passa por leis, por costumes, por instituições, pela opinião pública. Para ser livre, a mulher deve, além de trabalhar, poder pensar e agir nas mesmas condições que os homens. E esses direitos devem ser reivindicados coletivamente.
Beauvoir não estima com exatidão o quão perto estaria o horizonte dessas conquistas: “Parece mais ou menos certo que atingirão dentro de um tempo mais ou menos longo a perfeita igualdade econômica e social, o que acarretará em uma metamorfose interior.”
A permanência da obra
Setenta anos depois de publicado, “O Segundo Sexo” é importante referência no âmbito acadêmico, para os estudos sobre a condição da mulher, e em outros setores da sociedade, como movimentos sociais.
Beauvoir rompeu a máscara que encobria os direitos políticos como universais quando esses direitos eram exclusivos dos homens
As suas ideias de emancipação vão para as ruas e vão sendo levadas adiante sem ter que segui-la como uma liderança única
Desde 1979, muito mudou – na prática e no discurso – em relação à garantia de direitos, à promoção de oportunidades para mulheres e à discriminação de gênero. Mas a relação entre homens e mulheres é ainda muito desigual.
No âmbito do trabalho, homens são mais bem pagos do que mulheres nos mesmos setores e são protagonistas em áreas como engenharia, arquitetura, pesquisa científica, administração pública, entre outras. Mulheres têm renda muito inferior à de homens com mesmo nível de escolaridade e são as que despendem mais horas com trabalho doméstico.
Mulheres têm sua segurança afetada dentro e fora de casa com os altos índices de feminicídio. Também são afetadas por questões menos visíveis e de ordem psicológica como o chamado “trabalho emocional” – tarefas frequentemente assumidas exclusivamente por mulheres no contexto familiar, como lembrar dos aniversários da família, fazer a lista de compras ou convencer familiares a ir ao médico.
Nesse contexto, “O Segundo Sexo” oferece diferentes chaves de leituras para compreender a disparidade entre gêneros em diferentes situações cotidianas até hoje. Trata-se de um trabalho atual sete décadas depois de lançado, que questiona, responde e deixa perguntas. Continua a provocar seus leitores, no nível individual e coletivo, a repensar as possibilidades da vida da mulher.
Produzido por Laila Mouallem
Desenvolvimento por Jessica
Oliveira
Arte por Guilherme Falcão
© 2019 Nexo Jornal