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Mell Brites


21 de maio de 2022

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Foto: Renato Parada/Divulgação

Autora e pesquisadora sobre a infância e literatura, Mell Brites indica livros para compreender as particularidades e perspectivas do universo infantil

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Quando se trabalha com a infância, é importante ter em mente que estamos lidando com uma alteridade, e a aproximação a esse universo em teoria já distante parece ser condição para o sucesso de qualquer empreitada. Sou editora de literatura infantil e meu exercício a cada livro é sempre tentar me colocar no lugar desse outro para entender suas demandas, particularidades, modos de ver o mundo, e assim ser capaz de dialogar com ele. E é justamente a partir dessa prática, quase um uniforme que visto todos os dias, que acabo por perceber que a infância é, mais do que um período específico da vida, um estado que se pode sempre acessar.

Os livros aqui indicados, teóricos, ficcionais, autobiográficos, para adultos ou para crianças, propõem formas variadas de se acercar desse terreno tão familiar quanto inspirador.

Extremamente alto e incrivelmente perto

Jonathan Safran Foer (Trad. Daniel Galera, Rocco, 2006)

Uma forma mais que profícua de se relacionar com a infância é mergulhar na vida de personagens crianças – e dentre elas está o inesquecível Oskar, um carismático garoto de nove anos que perde o pai no ataque ao World Trade Center em Nova York. Ao longo do romance, vemos o esforço obstinado desse menino aparentemente superdotado em manter viva a presença de seu pai por meio de uma espécie de jogo de detetive. O contraste entre a capacidade cognitiva de Oskar, mais próxima da de um adulto, e a sua inocência escancaradamente infantil para lidar com as emoções é a base para que este livro seja tão comovente, e essa é uma das brechas da narrativa em que se faz possível não só experimentar a perspectiva da criança como também pensar sobre a infância (e sua suposta oposição com a vida adulta).

Infância

Graciliano Ramos (Record, 2020)

Não são poucos os autores de literatura brasileira que têm sua própria infância como inspiração: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector… Nesta coletânea de relatos autobiográficos escritos entre 1936 e 1944, é Graciliano Ramos quem, em ritmo de fala, revela suas memórias de menino e adolescente em Alagoas. Se por um lado seus depoimentos são marcados pelo sofrimento e pela opressão, revelando o lugar desprivilegiado de ser criado naquele contexto, por outro trazem momentos de nostálgica alegria. Também é possível acompanhar o seu processo de formação como leitor e flagrar o escritor em sua forma embrionária. Por isso, mesmo sem ser teórico, o livro nos faz meditar sobre o binômio infância e literatura.

Inês

Roger Mello e Mariana Massarani (Companhia das Letras, 2015)

A infância é com muita frequência tematizada e celebrada em livros ilustrados que, embora posicionados nas prateleiras voltadas ao público infantil nas livrarias, estão longe de se adequar a qualquer classificação etária. É o caso de “Inês”, escrito por Roger Mello e ilustrado por Mariana Massarani, possivelmente o primeiro livro para crianças dedicado a Inês de Castro, a rainha póstuma de Portugal retratada diversas vezes nas mais variadas obras de arte. Aqui, quem narra a sua trágica história – e ao mesmo tempo assume o protagonismo da narrativa – é a menina Beatriz, que relembra a morte da mãe a partir do seu ponto de vista. É o seu poderoso olhar infantil que preenche as páginas e subverte as marcas de dor e violência, transformando-as em beleza e poesia. As ilustrações, tão importantes quanto o texto na formação do sentido da obra, acompanham essa delicada revolução que só mesmo uma criança seria capaz de instaurar.

Power, Voice and Subjectivity in Literature for Young Readers

Maria Nikolajeva (Routledge, 2012)

Maria Nikolajeva parte da relação de poder entre adultos e crianças e do aspecto opressor da literatura infantil para discutir grandes obras como “Harry Potter”, “Píppi Meialonga”, “Onde vivem os monstros” e “Pedro Coelho”. Professora da Universidade de Cambridge e crítica literária, a autora aponta as estratégias usadas pelos autores desses livros para confirmar ou questionar essa relação hierárquica. Para isso, Nikolajeva parte do pressuposto de que as estruturas de poder estão mais visíveis nos livros para crianças do que em qualquer outro lugar. E então ela foca em temas como as novas masculinidades e novas feminilidades nas narrativas infantis, o questionamento da ordem existente pelos personagens jovens nas distopias voltadas para esse público, o papel das ilustrações em subverter certas premissas do mundo adulto nos livros ilustrados, entre outros.

Somos mesmo todos censores?

Perry Nodelman (Trad. Lenice Bueno, Solisluna Design, 2020)

Em dois ensaios, Nodelman expõe a sua mudança de perspectiva em relação à noção de censura na literatura infantil: se no primeiro texto do livro, de 1992, o autor defende a tal “liberdade de expressão” a qualquer custo, no segundo artigo, escrito 25 anos depois, ele se questiona sobre o papel dos adultos e dos livros na formação ética das crianças. Há algum assunto proibido nas narrativas voltadas aos jovens leitores? Qual é o papel do mediador na leitura? Os livros devem necessariamente educar? Qual a função das “leituras sensíveis”? Nesse movimento de honesta revisão, essas são algumas das perguntas fundamentais sobre as quais Nodelman reflete, e a soma desses dois ensaios resulta em um livro que situa a infância – e sua importância – em relação às transformações estruturais que estamos vivendo.

Mell Brites é autora de “ As crianças de Clarice (Editora Unicamp), doutoranda em letras pela Unesp-Assis (Universidade Estadual Paulista) e mestra em literatura brasileira pela USP (Universidade de São Paulo), com pesquisa sobre a infância e os livros infantis de Clarice Lispector. Ministra um curso livre sobre literatura infantil no Instituto Tomie Ohtake e é professora convidada da Pós-Graduação Literatura para Crianças e Jovens do Instituto Vera Cruz. Foi editora executiva da divisão infantil da Companhia das Letras e à frente do selo Companhia das Letrinhas, recebeu diversos prêmios pelas suas publicações, como o New Horizons – Digital Prize (Bolonha, Itália, 2012), e foi finalista do BOP – Best Children’s Publisher of the Year (Bolonha, Itália). Foi bolsista na Internationale Jugendbibliothek (Munique, Alemanha) em 2018 e publicou diversos artigos e resenhas sobre o universo da literatura infantil.

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