Trechos

‘Regresso a casa’: explorações entre quatro paredes

José Luís Peixoto


14 de agosto de 2020

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O ‘Nexo’ publica trecho de livro do celebrado escritor português José Luís Peixoto. Nesta coletânea de poemas, ele explora as minúcias do ambiente doméstico com a mesma curiosidade que dedica às paisagens da China e da Tailândia. Os textos selecionados abaixo, escritos durante a pandemia de covid-19, tratam das distorções e anseios da vida em quarentena

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José Luís Peixoto é um dos autores de maior destaque da literatura portuguesa contemporânea. Em 2001, foi atribuído o Prêmio Literário José Saramago ao romance “Nenhum olhar”. Com “Livro”, venceu o Prêmio Libro d’Europa, atribuído na Itália ao melhor romance europeu do ano anterior. Em 2016, venceu o Prêmio Oceanos com “Galveias”. Na poesia, o livro “Gaveta de papéis” recebeu o Prêmio Daniel Faria, e “A criança em ruínas” recebeu o Prêmio da Sociedade Portuguesa de Autores.

Olhamo-nos nos olhos pela internet.
Eu transmito-te este domingo à tarde,
a voz do vizinho através da parede.
Tu transmites-me a distância que existe
depois do que consigo ver pela janela.
Durante a noite mudou a hora e, no entanto,
continuamos no tempo de ontem.
Como é raro este domingo, não podemos
garantir que amanhã seja segunda-feira.
O futuro perdeu-se no calendário, existe
depois do que conseguimos ver pela janela.
O futuro diz alguma coisa através da parede,
mas não entendemos as palavras.
Lavamos as mãos para evitar certas palavras.
E, mesmo assim, neste tempo raro, repara:
tu e eu estamos juntos neste verso.
O poema é como uma casa, tem paredes
e janelas, é habitado pelo presente.
Olhamo-nos nos olhos pela internet,
estamos verdadeiramente aqui.
O poema é como uma casa,
e a casa protege-nos.
(29 de março de 2020)

Quarentena

Acredito que estou aqui, rodeado por realidade
e temperatura, tenho na boca um sabor acre,
talvez devesse beber um copo de água, não sei
se me espante com esta verdade existencial,
aparentemente simples e, logo a seguir, tão feita
de milagre, esta realidade composta por imagens
a poucos metros de mim, formas completas e
cores sem falta de luz, teriam a mesma nitidez
se estivessem refletidas num espelho e, no entanto,
não custa acreditar que estou aqui, o meu corpo
pesa sobre o lugar que ocupa, o meu nome pesa
sobre cada uma destas palavras, as sobrancelhas
pesam-me sobre os olhos, acredito que estou
aqui e, por isso, confiando na lógica, acredito que
este tempo existe, existência que imita o tom diário
com que se anuncia o número de infetados e de
mortos, 295 até agora, o silêncio da estrada vazia
é um apito contínuo nos ouvidos, o ar mantém
o seu talento transparente para separar as coisas.
Acredito que estou aqui, rodeado por mobiliário,
volumes de poesia completa nas estantes, um cão
velho a dormir profundamente, chá que arrefeceu
há muito tempo e se transformou apenas na calma
flutuante do seu perfume, inspiro este momento com
toda a força dos meus pulmões, aquilo que sinto
é um mundo, estou no centro do seu interior, inspiro
aquilo que sinto com toda a força dos meus pulmões,
olho para longe, à distância de um mês, de um ano,
mas o meu olhar esbarra num muro opaco, os tijolos
são perguntas, o cimento são perguntas, futuro?,
as respostas avariaram-se como brinquedos antigos
de corda, ou de pilhas, as respostas foram canceladas,
voos cancelados para países que deixaram de existir.
No entanto, chegará um tempo, rodeado por outras
certezas, e recordarei este inverno que não queria
acabar, a idade que o meu filho tinha nesta altura,
a idade que eu próprio tinha, e esta experiência que
agora é novidade a cada segundo irá transformar-se
num incrível convencimento. Verdadeiramente incrível
é imaginar esse tempo agora, mas será assim por força,
esse tempo existirá com a louca arrogância do futuro,
e todo este abalo será inofensivo como uma lata de
fruta que passou do prazo de validade, como uma
velha que foi uma mulher muito bonita, como os olhos
dessa velha ainda a brilharem no meio do seu rosto,
soterrados por ele, como a inútil memória de janeiro
no epicentro escaldante de uma tarde infinita de agosto.
Então, apenas serei capaz de lembrar que este cão ainda
estava vivo porque o refiro no poema, este cão concreto
a ressonar num canto da sala e num canto do poema,
as costelas a encherem-se e a esvaziarem-se de ar,
este cão exausto a ladrar às vezes em sonhos agitados.
Acredito que estou aqui e, a despropósito, acreditarei
que estive aqui, não faço a barba há mais de um mês,
transformo-me devagar noutra pessoa.
(6 de abril de 2020)
As águas passam a velocidade
constante, o rio é um corpo.
As letras avançam pelas palavras,
avançam pelos versos, compõem
o poema. O poema é um corpo,
passa a velocidade constante.
A palavra medo não pode faltar
no poema, é levada pela corrente,
medo, palavra entre palavras,
distinta por um momento, medo,
e indistinta logo a seguir, passou
como passa tudo e, no entanto,
o seu significado permanece
ao longo dos versos seguintes,
alastra, contagia todo o poema,
ressoa, o medo ressoa até ser
inseparável das outras palavras,
até todas as palavras significarem
medo, como água ou como a força
da água, como velocidade constante.
O medo é grande e único, é um corpo.
Na margem do rio, estou sentado
num sofá. Vejo notícias na televisão,
como se assistisse à passagem do rio.
Deus, és tu que tens o telecomando?
(8 de abril de 2020)
Sonhei com amigos que não vejo há muito tempo ou
talvez tenha sonhado com a ideia de amigos que
não vejo há muito tempo. Não recordo os seus nomes,
a tinta com que estavam escritos desbotou na água
ou no sol da comprida fronteira entre sonhar e
estar aqui, necessitado de substantivos tangíveis.
Não recordo os seus rostos, cobertos por sombras,
segredos, denso nevoeiro, erosão de uma memória
especialmente imperfeita, paavrasincmp etas.
Recordo que eram meus amigos, felizes por ver-me.
Recordo que tinham muitas notícias para contar.
Recordo que, de repente, nos apercebemos de que
não estávamos à distância de segurança e, por isso,
precisámos de acordar imediatamente.
(9 de abril de 2020)
Então, descobrimos que tínhamos
quantidades enormes de mel e de chá
na despensa. Acumuladores de mel e
de chá, o que diz isto sobre nós?
Não temos a certeza de que tenha
qualquer significado, mas esperamos
que sim.
(11 de abril de 2020)
Rego os vasos da varanda e, de repente,
sinto falta do olhar da minha mãe, menina
das fotografias a preto e branco.
Sou um filho de 45 anos.
Procuro consolo no telefone a chamar,
na repetição deste sinal interrompido.
Procuro consolo nesta espera, tempo
em que imagino os teus passos agora lentos,
a tua preocupação.
Mãe,
não tenhas pressa de atender o telefone
e de acabar com este tempo.
Mãe,
este tempo existe como tempo que
não existe.
Mãe,
não saias de casa,
nunca saias de casa.
És a última velha da minha vida.
(12 de abril de 2020)

Ilustração de uma mesa de cozinha estampa a capa do livro "Regresso a casa", de José Luís Peixoto

Regresso a casa

José Luís Peixoto

Dublinense

112 páginas

Lançamento em agosto de 2020