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‘Caminhar’: o elemento filosófico por trás da atividade

Frédéric Gros


16 de dezembro de 2021

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O ‘Nexo’ publica trecho de livro que investiga como a caminhada se relaciona à construção do pensamento humano. Em 25 ensaios, a obra examina o papel dos passeios nas obras de intelectuais como Nietzsche, Rimbaud, Kant e Thoreau

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Antes de mais nada, há a liberdade suspensiva oferecida pela caminhada, mesmo que seja um simples passeio: livrar-se da carga das preocupações, esquecer por algum tempo os afazeres. Optamos por não levar o escritório conosco: saímos, flanamos, pensamos em outras coisas. Com as excursões de vários dias, acentua-se o movimento de desapego: escapamos das obrigações do trabalho, libertamo-nos do jugo dos hábitos. Mas em que aspecto caminhar nos faria sentir essa liberdade mais do que numa longa viagem? Pois, afinal, surgem outras limitações não menos penosas: o peso da mochila, a duração das etapas, a incerteza do tempo (ameaças de chuva ou de tempestade, calor sufocante), a rusticidade dos albergues, algumas dores… Mas só a caminhada consegue nos libertar das ilusões do indispensável. Como tal, ela permanece o reino de poderosas necessidades. Para chegar a determinada etapa, é preciso caminhar tantas horas, que correspondem a tantos passos; a improvisação é limitada, pois não estamos percorrendo aleias de jardim e não podemos nos enganar nos entroncamentos, sob pena de pagar um preço muito alto. Quando a neblina invade a montanha ou uma chuva torrencial começa a cair, é preciso seguir, continuar. A comida e a água são objeto de cálculos precisos, em função do percurso e dos mananciais. Sem falar no desconforto. Ora, o milagre não é ficarmos felizes apesar disso, mas graças a isso. Quero dizer que não dispor de múltiplas opções quando se trata de comer ou de beber, estar submetido à grande fatalidade das condições climáticas, contar somente com a regularidade do próprio passo, tudo isso faz, de pronto, que a profusão da oferta (de mercadorias, de transportes, de conexões) e a multiplicação das facilidades (de comunicar, de comprar, de circular) nos pareçam outras tantas formas de dependência. Todas essas microlibertações não passam de acelerações do sistema, que me aprisiona com mais força. Tudo o que me liberta do tempo e do espaço me afasta da velocidade.

Para quem nunca teve essa experiência, a simples descrição do estado do caminhante já aparece como um absurdo, uma aberração, uma forma de servidão voluntária. Porque, espontaneamente, o citadino interpreta como privação o que para o caminhante é uma libertação: não estar mais preso na teia das trocas, não estar mais reduzido a um nó da rede que redistribui informações, imagens e mercadorias; perceber que tudo isso tem apenas a realidade e a importância que lhe atribuo. Além de meu mundo não desmoronar por não estar conectado, essas conexões subitamente parecem laços opressores, sufocantes, apertados demais.

A liberdade, então, é um bocado de pão, um gole de água fresca, uma paisagem aberta.

Isso dito, desfrutando dessa liberdade suspensiva, feliz de partir, também fico feliz de voltar. É uma felicidade entre parênteses, a liberdade como uma escapada de um ou vários dias. À minha volta, nada mudou de fato. E as antigas inércias recuperam seu lugar: a velocidade, o esquecimento de si e dos outros, a excitação e o cansaço. O chamado da simplicidade duro tempo de uma caminhada: “O ar puro te fez bem”. Libertação pontual, e logo volto a submergir.

A segunda liberdade é agressiva, mais rebelde. Em nossa vida, a liberdade suspensiva não permite mais do que uma “desconexão” temporária: escapo da rede por alguns dias, experimento em trilhas desertas o que é estar fora do sistema. Mas pode-se também decidir por uma ruptura. O apelo à transgressão, ao “grande fora”, é facilmente encontrado nos escritos de Kerouac ou de Snyder: acabar com as convenções estúpidas, com a segurança letárgica de quatro paredes, com o tédio do Mesmo, com o desgaste da repetição, a covardia dos abastados e o ódio à mudança. É preciso provocar partidas, transgressões, alimentar, enfim, a loucura e o sonho. A decisão de caminhar (partir para longe, para algum lugar, tentar outra coisa) é compreendida, pois, como o chamado do selvagem (The Wild). Descobrimos na caminhada o imenso vigor das noites estreladas, das energias elementares, e nossos apetites se adéquam: eles são enormes, e nosso corpo é saciado. Quando fechamos a porta do mundo, nada mais nos retém: as calçadas não guiam mais os passos (o percurso, 100 mil vezes repetido, de voltar para a casa). Os entroncamentos oscilam como estrelas vacilantes, redescobrimos o aterrorizante medo de escolher, a liberdade vem como uma vertigem.

Dessa vez, não se trata de se libertar do artifício para experimentar alegrias simples, mas de conhecer a liberdade como limite de si mesmo e do humano, como transbordamento interno de uma Natureza rebelde que me supera. A caminhada pode provocar estes excessos: excesso de cansaço, que leva o espírito ao delírio; excesso de beleza, que faz a alma vacilar; excesso de embriaguez nos picos, no alto dos desfiladeiros (o corpo explode). Caminhar acaba por despertar em nós essa parte rebelde, arcaica: nossos apetites tornam-se toscos e intransigentes, e nossos elãs, inspirados. Porque caminhar nos coloca na vertical do eixo da vida: arrastados pela torrente que mana abaixo de nós.

Com isso, quero dizer que, caminhando, não se vai ao encontro de si mesmo, como se se tratasse de se redescobrir, de se libertar das velhas alienações para reconquistar um eu autêntico, uma identidade perdida. Caminhando se escapa à própria ideia de identidade, à tentação de ser alguém, de ter um nome e uma história. Ser alguém é bom para as noitadas mundanas em que cada um fala de si, é bom para os consultórios de psicólogos. Mas ser alguém não seria também uma obrigação social que acorrenta (obrigamo-nos a ser fiéis ao nosso próprio retrato), uma ficção estúpida que pesa sobre nossos ombros? A liberdade ao caminhar é a de ser ninguém, porque o corpo que caminha não tem história, só uma corrente de vida imemorial. Assim, somos um animal de duas patas que avança, uma simples força pura entre grandes árvores, apenas um grito. E, muitas vezes, caminhando, gritamos para afirmar nossa presença animal resgatada. Provavelmente, nessa grande liberdade enaltecida pela geração atormentada de Ginsberg ou Burroughs, nesse abuso de energia que despedaçaria nossa existência e derrubaria as referências dos submissos, a caminhada nas montanhas era apenas um meio entre outros, que incluíam as drogas e o álcool, as bebedeiras e as orgias, com os quais se tentava alcançar a inocência.

Mas um sonho pode ser vislumbrado nessa liberdade: caminhar, como expressão da recusa de uma civilização putrefata, contaminada, alienante, miserável.

“Tenho lido Whitman, sabe o que ele diz, ‘Cheer up slaves and horrify foreign despots’ [Alegrem-se escravos e horrorizem os déspotas estrangeiros], ele quer dizer que a atitude para o Bardo, o bardo zen-lunático dos antigos caminhos do deserto, vê a coisa toda como um mundo cheio de andarilhos de mochilas nas costas, Vagabundos do Darma que se recusam a concordar com a afirmação generalizada de que consomem a produção e portanto precisam trabalhar para o privilégio de consumir, por toda aquela porcaria que não queriam, como refrigeradores, aparelhos de tv, carros, pelo menos os carros novos e chiques […] milhares ou até mesmo milhões de jovens americanos vagando por aí com mochila nas costas […].”

A última liberdade do caminhante é mais rara. É um terceiro estágio, depois do regresso às alegrias simples e da reconquista do animal arcaico. É a liberdade do renunciante. Heinrich Zimmer, um dos grandes eruditos indólogos, explica que na filosofia hindu distinguem-se quatro etapas do caminho da vida. A primeira é a do aluno, do aprendiz, do discípulo. Na aurora de sua vida, deve basicamente obedecer às injunções do mestre, escutar suas lições, submeter-se às críticas e conformar-se aos princípios. Trata-se de receber. Numa segunda etapa, o homem, já adulto, no meio-dia de sua existência, torna-se um chefe de casa, casado, responsável pela família: ele administra como pode sua fortuna, contribui para a manutenção dos sacerdotes, exerce um ofício, submete-se ele próprio às obrigações sociais e as impõe aos outros. Aceita vestir as máscaras sociais que lhe atribuem um papel na sociedade e na família. Mais adiante, no crepúsculo de sua vida, quando os filhos estão preparados para assumir seu lugar, o homem pode rejeitar em bloco os deveres sociais, os encargos familiares e as preocupações econômicas para se tornar eremita. É a etapa da “partida para a floresta”, em que, por meio do recolhimento e da meditação, terá de aprender a se familiarizar com o que, desde sempre, permaneceu inalterado em nós esperando para ser despertado: esse Eu eterno, que transcende as máscaras, as funções, as identidades e as histórias. E o peregrino, por fim, sucede ao eremita, no que deve ser a interminável e gloriosa noite de verão de nossa existência: uma vida doravante dedicada à itinerância (é a etapa do mendigo errante), em que o infinito caminhar, aqui e lá, ilustra a coincidência do Eu anônimo e do coração onipresente do Mundo. O sábio agora renunciou a tudo. Essa é a mais alta liberdade: a do desapego total. Já não estou implicado nem em mim mesmo nem no mundo. Indiferente ao passado e ao futuro, não sou nada mais que o eterno presente da coincidência. E, como se vê no diário de peregrinação de Swâmi Râmdas, no momento em que renunciamos a tudo é que tudo nos é oferecido, no momento em que não aspiramos a nada é que tudo nos é dado, em profusão. Tudo,ou seja, a intensidade mesma da presença.

É nas longas caminhadas que se entrevê essa liberdade de pura renúncia. Depois de andar durante muito tempo, chega um momento em que não sabemos mais quantas horas já sepassaram nem quantas ainda faltam para chegar ao fim; sentimos nos ombros o peso do estritamente necessário, pensamos que já é o bastante – se é que de fato é preciso mais para insistir na existência – e sentimos que poderíamos continuar assim por dias, por séculos. Mal sabemos, então, aonde vamos e por quê – é algo que importa tão pouco quanto meu passado ou saber que horas são. E nos sentimos livres porque, quando tentamos lembrar os antigos signos de nossa permanência no inferno – nome, idade, profissão, carreira –, tudo, absolutamente tudo, parece irrisório, minúsculo, fantasmático.

Frédéric Gros é formado em filosofia pela École Normale Supérieure de Paris. Defendeu em 1995 o doutorado em filosofia na Université Paris-Est Créteil, onde lecionou por mais de duas décadas. Estuda a filosofia francesa contemporânea e é um dos maiores especialistas na obra de Michel Foucault da atualidade. Desde 2013, é professor de teoria política no SciencesPo (Institut d’Études Politiques de Paris) e pesquisador do centro de pesquisas políticas da mesma faculdade.

Capa do livro "Caminhar, uma filosofia", com fundo rosa e detalhes bordados em preto

Caminhar, uma filosofia

Frédéric Gros

Trad. Letícia Mei

Ubu

224 páginas

Lançamento em 27 de dezembro

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