Trechos

‘Uma ecologia decolonial’: elos entre raça e meio ambiente

Malcom Ferdinand


20 de maio de 2022

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O ‘Nexo’ publica trecho de livro do martinicano Malcom Ferdinand. Sob uma perspectiva caribenha, a obra retrata como a crise climática deriva do legado colonial e propõe saídas para o problema

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A tempestade ecológica em curso revela danos e problemas associados a certas maneiras de habitar a Terra próprias da modernidade. Compreender esses problemas requer a adoção de uma perspectivade longo prazo e a volta a momentos e processos fundadores da modernidade que contribuíram para a situação ecológica, social e política de hoje. Razão pela qual é importante voltar ao momento fundador que foi a colonização européia das Américas a partir de 1492. Afinal, é inevitável constatar que esse evento continua prisioneiro da dupla fratura colonial e ambiental do mundo moderno. Por um lado, uma crítica anticolonial denuncia as conquistas, o genocídio de povos ameríndios, as violências cometidas contra as mulheres ameríndias e as mulheres Pretas, o tráfico negreiro transatlântico e a escravidão de milhões de Pretos. Por outro, uma crítica ambiental coloca em evidência a amplitude da destruição dos ecossistemas e da perda da biodiversidade causada pelas colonizações europeias das Américas. Essa dupla fratura apaga as continuidades em que humanos e não humanos foram confundidos como “recursos” que alimentavam um mesmo projeto colonial, uma mesma concepção da Terra e do mundo. Proponho cuidar dessa dupla fratura retornando ao gesto principial da colonização: o ato de habitar.

A colonização européia das Américas implementou violentamente um modo peculiar de habitar a Terra que denomino o habitar colonial. Embora a colonização europeia seja plural quanto a suas nações, seus povos e seus reinos, quanto a suas políticas, suas práticas e seus diferentes períodos, o habitar colonial desenha uma trama comum, que descrevo aqui com um foco particular nas experiências francesas. Os atos de criação das companhias francesas, como a companhia de São Cristóvão, que financiaram e fundaram a exploração das ilhas caribenhas, explicitam a intenção de fazer habitar essas ilhas:

“Nós, abaixo-assinados, reconhecemos e confessamos haver feito e fazer pelos presentes fiel associação entre Nós […] para fazer habitar e povoar as ilhas de São Cristóvão e de Barbados, e outras situadas na entrada do Peru, do décimo primeiro ao décimo oitavo grau da linha equinocial que não são possuídas por príncipes cristãos, tanto a fim de instruir os habitantes das tais ilhas na religião católica, apostólica e romana quanto para nela traficar e negociar erário e mercadorias que poderão ser recolhidos e retirados das tais ilhas e dos locais adjacentes, levá-los exclusivamente ao Havre […].”

Habitar pode parecer algo evidente à primeira vista. Habitariam aqueles que lá estão presentes, aqueles que povoam a Terra. Entretanto, aconteceu de modo completamente diverso, como atesta o vocabulário corrente. As parcelas de florestas desbravadas [défrichées] para plantar tabaco ou cana-de-açúcar foram designadas como terras “habituadas” [“habituées”]. As casas dos colonizadores escravagistas nas imediações das plantações foram chamadas – e o são ainda hoje – “habitações” ou “bitations”, em crioulo. O ocupante homem de uma dessas habitações é, então, chamado de “habitante”. Assim, o habitar colonial apoiou-se num conjunto de ações que determinam as fronteiras entre os que habitam e os que não habitam. Existem terras que são chamadas de “aclimatadas” e outras que não o são. Há casas que são habitações e outras que não o são. Pessoas povoaram essas ilhas sem, no entanto, serem designadas como “habitantes”. Em contrapartida, houve habitantes que residiam apenas raramente em suas habitações.

Por “habitar colonial” designo algo diferente de um hábitat, um estilo de arquitetura ou um modo de ocupação e de cultura. Se Martin Heidegger demonstrou bem que habitar e construir não são atividades circunstanciais do homem, mas antes constituem uma modalidade insuperável de seu ser, ele não permite compreender o habitar colonial. O habitar heideggeriano pressupõe uma Terra totalizada e um homem só, imóvel no seu habitar. Ora, apreender filosoficamente o habitar colonial requer o interesse por esses outros e seus devires, por essas outras terras, por esses outros humanos e por esses outros não humanos. É o que propõe o poeta e filósofo martinicano Aimé Césaire em seu poema Diário de um retorno ao país natal, colocando em primeiro plano “aqueles sem os quais a terra não seria a terra”. Césaire não revela uma concepção do habitar que “leva em conta o outro”, e sim que só se pode pensar sob a condição da presença dos outros. Sem os outros, a Terra não é Terra, é deserto ou desolação. Habitar a Terra começa nas relações com os outros. Assim, o habitar colonial designa uma concepção singular da existência de certos humanos sobre a Terra – os colonizadores –, de suas relações com outros humanos – os não colonizadores –, assim como de suas maneiras de se reportar à natureza e aos não humanos dessas ilhas. Esse habitar colonial contém princípios, fundamentos e formas.

Princípios do habitar colonial: geografia, exploração da natureza e altericídio

O habitar colonial contém três princípios estruturais claramente enunciados nos atos da companhia de São Cristóvão. Em primeiro lugar, o habitar colonial é geográfico de duas maneiras, no mínimo. Por um lado, é geográfico por estar localizado no centro da geografia da Terra, “na entrada do Peru, do décimo primeiro ao décimo oitavo grau da linha equinocial”. Ele tem um espaço determinado, um lugar designado, um encerramento. Por outro, o habitar colonial é geograficamente subordinado a outro lugar, a outro espaço. É necessário que sejam produzidas mercadorias nessas ilhas e que elas sejam levadas “exclusivamente ao Havre”. O sentido dessa exclusividade das trocas colocada como princípio – o princípio do exclusivo – não se esgota em sua compreensão econômica. Tal subordinação demonstra uma relação ontológica de tais ilhas com o Havre, ou seja, com a França metropolitana. O habitar colonial é pensado como subordinado a outro habitar, o habitar metropolitano, ele mesmo pensado como o habitar verdadeiro. Isso significa que o habitar dessas ilhas caribenhas foi concebido apenas sob a condição dessa subordinação geográfica e dessa dependência ontológica em relação ao habitar metropolitano europeu.

O segundo princípio do habitar colonial fundamenta-se na exploração das terras e da natureza dessas ilhas. Ele é claramente expresso neste trecho da incumbência dada por Richelieu aos colonizadores d’Esnambuc e Du Roissey, em 1626:

“[…] eles [d’Esnambuc e Du Roissey] viram e reconheceram que o ar lá é muito ameno e temperado, e as tais terras férteis e de grande rendimento, das quais se pode retirar uma quantidade de matérias-primas úteis para a manutenção da vida dos homens, eles até souberam pelos indígenas que habitam as tais ilhas que há minas de ouro e de prata, o que lhes teria dado a ideia de fazer habitar as tais ilhas por uma multidão de franceses para instruir seus habitantes na religião católica apostólica romana […].”

Longe de visar apenas à “manutenção da vida dos homens”, o habitar colonial visa à exploração com fins comerciais da terra. Foi a possibilidade de extrair produtos para fins de enriquecimento que “deu a ideia” de fazer habitar. Ele pressupõe essa relação de exploração intensiva da natureza e dos não humanos.

Por fim, o terceiro princípio do habitar colonial é o altericídio, ou seja, a recusa da possibilidade de habitar a Terra na presença de um outro, de uma pessoa que seja diferente de um “eu” por sua aparência, seu pertencimento ou suas crenças. O habitar colonial não é, entretanto, um habitar-só. Povoando as ilhas “que não são possuídas por príncipes cristãos”, o habitar colonial reconhece esses outros príncipes e nações europeias com os quais a Terra é partilhada, baseando-se na “evidência” de que a Terra pertence aos cristãos. Foi a partir dessa evidência pressuposta que, na bula pontifícia de 4 de maio de 1493, o papa Alexandre vi reafirmou o princípio de que a Terra pertence aos cristãos e executou uma partilha das ilhas e do novo continente entre o rei e a rainha de Castela: Fernando e Isabel. Esse mesmo reconhecimento do outro cristão no habitar colonial foi reafirmado pela partilha das novas terras feita com outros cristãos por meio das linhas de amizade. Assim, Richelieu legitima a apropriação das Antilhas, porque estariam além de tais linhas de amizade. Assim, Richelieu legitima o habitar como um habitar necessariamente com outro cristão, um outro com quem se partilha a Terra e com quem se concorda em discordar e guerrear.

Malcom Ferdinand é engenheiro ambiental pela University College London e doutor em filosofia política e ciência política pela Université Paris Diderot. Atualmente, é pesquisador do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e atua no Irisso (Institut de Recherche Interdisciplinaire en Sciences Sociales) da Université Paris Dauphine-PSL.

Capa do livro "Uma ecologia decolonial"

Uma ecologia decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho

Malcom Ferdinand

Trad. Letícia Mei

Ubu

320 páginas

Lançamento em 1 de junho

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